“O que queremos? / Quando queremos?" é já um clássico da internet brasileira. Em formato de tirinha, na maior parte das vezes com apenas quatro quadros, o meme brinca com um humor de quebra de expectativas. A cena é sempre a mesma: um agitador se dirige a uma multidão com as palavras de ordem que se tornaram bordão. A piada é construída em torno da segunda resposta ao agitador. “Quando queremos?" (ou em algumas versões “Como queremos?") é o xis da questão, já que a multidão se revela incoerente e indisciplinada.
A série brasileira ‐ para mais informações, cf. o verbete “O que queremos / Quando queremos" no #MUSEUdeMEMES ‐ é uma criação de Francine Grando, inspirada em personagens da artista Allie Brosh. Brosh publicou em 2009 uma webcomic intitulada “Hyperbole and a Half", cujas situações tinham, por sua vez, leve inspiração nos Rage Comics. Um dos episódios de Brosh, “This is Why I'll Never be an Adult", trazia, em momentos distintos, a mesma personagem (autobiográfica, diga-se de passagem) gritando “Clean ALL the things!", entusiasmada para organizar as coisas em seu próprio quarto, e, mais tarde, rapidamente desmotivada pelo excesso de tarefas. Trata-se de uma crítica sutil a como os jovens perdem a empolgação em questão de minutos com atividades que demandam engajamento contínuo. Francine criou então suas primeiras peças sobre o padrão visual dessas imagens em 2010, no decorrer de uma de suas especializações (em Marketing Digital).
Em 2011, usuários do Reddit e de outros fóruns virtuais criaram uma espécie de canvas (ou template) que justapunha exatamente as duas imagens que Francine vinha utilizando como objeto de suas investigações junto a um grupo focal, para explorar diferentes situações cômicas. Foi então que, internacionalmente, dois memes distintos tiveram origem: “All the things?" ‐ a incitação de Allie Brosh parodiada ‐ e “What do we want / When do we want" ‐ uma montagem com a personagem original replicada várias vezes, e que deve seu título a um cântico de protesto empregado pelo movimento estudantil na década de 1960 em vários países, notadamente os Estados Unidos ‐ a estrutura do cântico é baseada no seguinte refrão: “O que queremos?" (Alguma demanda) “Quando queremos? “Agora".
No Brasil, segundo Francine, muito embora ela já utilizasse a imagem e já tivesse propriedade sobre a fanpage “O que queremos…" desde 2010, o meme se popularizou a partir de 2012, quando, ao concluir sua segunda pós-graduação, a pesquisadora decidiu transformá-lo em um empreendimento, e foi então aconselhada a realizar alterações nas imagens originais de Brosh.
Francine é formada em filosofia, e tem especialização em Análise de Usuários e em Marketing Digital. Hoje, atua como gerente de marketing, consultora e digital influencer. A fanpage de “O que queremos…" tem atualmente mais de 520 mil seguidores no Facebook e rende em média R$10 a R$15 mil por mês, que se reverte, segundo a autora, em doações para mais de 30 instituições diferentes. O design e o conteúdo das tirinhas também vem evoluindo. As situações têm trabalhado cada vez mais com um humor cotidiano, próprio da experiência de sociabilidade, e, em certa medida, menos político. Já as personagens receberam um banho cosmético de 2012 para cá. Francine conta que, naquela época, entrou em contato com Allie Brosh solicitando o uso das personagens da tirinha. Com a autorização concedida, ela viu um meme muito semelhante se popularizar lá fora e foi então aconselhada a redesenhar as imagens para evitar problemas envolvendo violação à propriedade intelectual, no futuro. Foi assim que “O que queremos…", aos pouquinhos, ganhou um layout todo próprio e se tornou o primeiro meme registrado no Brasil.
Para entender melhor a mente por trás da obra, o #MUSEUdeMEMES entrevistou Francine Grando em agosto de 2017.
#MUSEUdeMEMES Pra começarmos, você poderia contar um pouco da sua trajetória profissional até aqui?
Francine Grando Eu trabalho com marketing desde 2008. Sou bacharel em Filosofia (2007), especialização em Analise de Usuários (2010), e [outra] pós em Marketing Digital (2012).
#MUSEUdeMEMES Como foi essa passagem da filosofia para o marketing?
Francine Grando Filosofia é saber lidar com pessoas. O marketing não é diferente. É relacionamento, saber o que os usuários querem.
#MUSEUdeMEMES Estava nos planos ir para o marketing?
Francine Grando Na real, eu queria dar aula [de filosofia] mesmo, mas seis meses em sala me fizeram mudar de ideia [risos]. Em uma escola particular, dava aula pro ensino médio, mas a escola era bem rígida com várias coisas. Isso me podava como professora. Então, surgiu uma oportunidade para trabalhar diretamente com marketing.
#MUSEUdeMEMES Como surgiu o meme “O que queremos…"?
Francine Grando Em 2008, fiz [pós em] Análise de Usuários, e percebi que não havia [muitos] estudos sobre como a mensagem dos sites de redes sociais influenciavam os usuários. Em 2010, quando entrei na pós em Marketing, decidi que iria estudar isso. Procurei um caso parecido, e achei uma psiquiatra dos EUA que estudava esse tema. Na época [em 2010], ela estudava o trabalho da Allie Brosh e viu que as postagens do blog de alguma maneira influenciavam no dia a dia dos seus leitores. Ainda em 2010, selecionamos 70 pessoas do Brasil inteiro e criamos um grupo [focal virtual], onde eu criava peças gráficas e aplicava nelas para saber como aquilo as impactava ou não. Eu usei figuras da Allie e de outras artistas. Inclusive, criei naquela época a página do “O que queremos…" [A criação da fanpage remonta a 15 de maio de 2010]. Em 2011 para 2012, um post do blog da Allie virou meme, o que deu muito mais visibilidade pro blog e atrapalhou os estudos da psiquiatra [risos]. Consequentemente os posts que eu fiz em 2010, que usavam o boneco da Allie, se espalharam no Brasil por causa da entrada do Whatsapp. Em 2012 vi que o “O Que Queremos…" caiu nas graças do povo, então, centralizei todas as peças na página. Na mesma época, recebi a resposta do jurídico da Allie sobre a liberação do uso ‐ cujo pedido havia sido feito em 2010 ‐ do boneco dela, e não me deixaram mais usar. A solução foi refazer o boneco sem perder algumas características e registrar ‐ até para o fim de proteger o trabalho da Allie. Então registrei a marca em 2012. Ele é o único meme registrado no Brasil.
#MUSEUdeMEMES Então o trabalho da Allie já estava registrado?
Francine Grando O dela sim, mas o dela é diferente. Não tem nada a ver com o que faço no “O que queremos…". Acontece que, nessa confusão de eu usar o boneco dela e vazar as tirinhas de 2010, a galera associou uma coisa à outra. Quando a galera me diz que o meme é de 2013, eu falo: “é de 2010, vocês que não sabiam que existia" [risos].
#MUSEUdeMEMES Que diferenças você consegue apontar entre “O que queremos…" e o trabalho da Allie?
Francine Grando O meme dela é isso aqui [Francine apresenta uma imagem da artista. Uma personagem ‐ no caso o boneco é ela ‐ com uma vassoura na mão, que pode ser associada a qualquer frase. Já vi o boneco dela com “BOM DIA!!" [risos], e a galera compartilhando. A origem do meme dela é um post no blog sobre ela ter que fazer vários deveres diários, incluindo limpar a casa (a imagem do meme em si). E o “O que queremos…" é o tal famoso “jeitinho brasileiro" ‐ que de brasileiro tem nada, porque o mundo inteiro compartilha [risos] ‐, querer uma coisa mas fazer algo totalmente contrário para conseguir aquilo que se quer.
#MUSEUdeMEMES Como foi a reação do meio acadêmico quando você apresentou um meme como objeto de estudo?
Francine Grando Eu tirei zero [risos]. Meu professor disse que era bobagem. Inclusive na época que o #MUSEUdeMEMES falou comigo, eu falei que estava com processo contra a instituição, mas a instituição depois do processo reconheceu. [O #MUSEUdeMEMES contatou Francine, para conceder uma entrevista em 2013, mas, na época, diante de questões pessoais, a negociação não foi à frente, como ela mesma explica na entrevista concedida quatro anos depois.]
#MUSEUdeMEMES E você teve o trabalho aprovado?
Francine Grando Sim. Depois de um processo f* reconheceram e aprovaram, mas eles queriam o mérito do trabalho. Aí, eu vendi o estudo para o governo em 2013.
#MUSEUdeMEMES Como foi esse procedimento de registrar o meme?
Francine Grando Foi f*! Porque os advogados não entendiam ‐ e nem entendem até hoje! Eu tive que pegar o registro da Allie e moldar a partir dele o meu. Na brincadeira desembolsei uns R$7 mil. Depois disso, fiz um contrato social, no qual todo dinheiro que ganho com a marca, eu doo. Tenho umas 30 instituições a que são repassados mensalmente recursos. Hoje, se uma marca quer usar o “O que queremos…" de qualquer forma, com qualquer boneco, deve ser solicitado o uso. Aí vem, eu mando pro jurídico, e eles aprovam ou não.
#MUSEUdeMEMES Já aconteceu deles não aprovarem?
Francine Grando Já, mas muita gente faz também sem pedir. Aí, o jurídico entra com processo, nem passa por mim. Eles têm liberdade pra isso. Lembrando que é possível, sim, usar o meme sem se estressar. O problema é quando a marca se vende em cima. Faz sete anos que a página tá no ar, e quatro que o “O que queremos…" virou meme. E mesmo assim, mantenho o alcance semanal orgânico da página entre 3 e 4 milhões, com picos de 8 milhões. Quando posto com mais frequência é certo. Tem página de meme com 2 milhões de curtidas que não tem nem metade disso de alcance orgânico, ou seja, o que não é pago pro Facebook, o envolvimento natural das pessoas.
#MUSEUdeMEMES Você aconselharia outros criadores de outros memes que os registrassem também?
Francine Grando Só se eles querem se incomodar com pessoal que trabalha com social media [risos]. Mentira! Depende de que finalidade eles querem [impingir ao meme]. Fora do Brasil, criadores de memes ganham muita grana com o registro deles. O “O que queremos…" dá dinheiro, mas eu decidi doar. Rola uma média de R$10, R$15 mil mensais só sobre o uso da marca, fora os processos. Processo por uso indevido começa em R$50 mil. Acho que o “O que queremos…" é o primeiro meme do Brasil, aliás, do Facebook.
#MUSEUdeMEMES Como funciona a página do Facebook? Existe uma equipe com tarefas pré-estabelecidas e divididas?
Francine Grando Já existiu, mas, desde 2015, só eu que mexo.
#MUSEUdeMEMES E você tem algum padrão de postagem? Uma hora certa pra não flopar?
Francine Grando Eu trabalho com Análise de Usuários, então, sei qual o melhor dia e horário pras postagens, baseado no comportamento dos usuários. Cada página tem sua métrica.
#MUSEUdeMEMES Você participa da criação de conteúdo ou apenas gerencia? Como é esse processo criativo?
Francine Grando Sempre passou tudo por mim. A gente usou muito tempo sugestões também, mas tudo passava por mim. Porque teve uma época que eu levava processo [risos] das pessoas que ficavam ofendidas com as postagens, principalmente de cunho político e religioso.
#MUSEUdeMEMES E como você faz esse discernimento entre o que pode e o que não pode postar?
Francine Grando Empatia e senso comum. Tem coisas que as pessoas reclamam e são absurdas.
#MUSEUdeMEMES Tipo?
Francine Grando Quando é de política, por exemplo: “O que queremos?" “Acabar com a corrupção" “Quando queremos?" “Depois que eu terminar de instalar minha tv a gato aqui" Aí tem gente que vem xingar mesmo, porque eles se veem lá e acham que tô falando diretamente pra um deles.
#MUSEUdeMEMES Tem algum tipo de humor que vocês não fariam?
Francine Grando Humor politicamente incorreto eu seguro. Vem sugestão, mas não posto. Aliás, tudo que vá além do limite, sabe?
#MUSEUdeMEMES Qual a sua opinião sobre empresas que utilizam memes como forma de propaganda?
Francine Grando Eu acho que tem que usar. Meme tá aí pra deixar tudo melhor, mas é preciso ter bom senso e pesquisar. Galera perde a noção de uso de imagem, direitos autorais. Acha que internet é terra sem lei.
#MUSEUdeMEMES Você acha que é possível hoje em dia, ou num futuro próximo, que as pessoas consigam se manter financeiramente trabalhando com memes?
Francine Grando É possível, sim. Temos exemplos fora do Brasil. Não sei o nome… aquele gato lá que voa [Nyan Cat, uma criação registrada de Christopher Torres] [risos]. Eles ganham muita grana e registraram o meme.
#MUSEUdeMEMES E o que você acha do estudo acadêmico de memes hoje em dia?
Francine Grando É super-válido e tem muita coisa pra tirar ainda, que as marcas precisam aprender. Aliás, os profissionais que “gestam" as marcas, né. Tem muita coisa oculta ainda.
#MUSEUdeMEMES Quem sabe no futuro marcas e universidade não trabalhem juntas nesse assunto. Seria meu sonho?
Francine Grando Nossa, seria maravilhoso. Uma Universidade dos Memes, chega manteiga derrete só de pensar [risos].
#MUSEUdeMEMES Então pra finalizar: no seu perfil do Facebook diz que você tem envolvimento com a Carreta Furacão. Poderia falar um pouco disso?
Francine Grando [risos] Ganhei uma fantasia de Mickey de Chernobyl. Não resisti em colocar lá que trabalho com eles [risos].