#MUSEUdeMEMES
Memes estão definitivamente na moda. Há quem diga que a própria ideia de meme é um meme. Nós abrimos nossa caixa postal e recebemos uma correntinha de email, acessamos um site de rede social e nos deparamos com uma imagem legendada, dali uns dois minutos chega a paródia de um vídeo viral. A palavra é um neologismo, o campo de estudos é recente, mas o fenômeno não está restrito à cultura contemporânea. Os memes têm história…
O conceito de meme se origina, nas mais diferentes cronologias, de um debate controverso na sociobiologia na década de 1970. O termo é empregado pela primeira vez de forma absolutamente despretensiosa e praticamente de relance, como um desvio colateral do argumento a que se propunha o renomado etólogo Richard Dawkins.
Em seu livro O Gene Egoísta, Dawkins propunha um termo para dar conta dos processos de replicação e evolução cultural que lhe chamaram a atenção quando ele iniciou sua defesa à tese do darwinismo universal. Para o pesquisador, assim como os genes eram os principais responsáveis por replicarem o conteúdo geracional na evolução biológica dos organismos vivos, talvez houvesse, ele reconheceu, uma outra unidade de replicação, distinta daquela, responsável pela seleção e transmissão de conteúdos inscritos em nossa cultura. Dawkins concebe, então, uma espécie de evolucionismo cultural, que ocorreria em paralelo e em complemento à evolução natural, através de um segundo replicador, diferente dos genes. Não tendo encontrado outro nome mais adequado para batizá-lo, o biólogo adaptou a raiz grega “mimeme" (μίμημα) e criou o termo “meme", que, é claro, rapidamente viralizou.
Desde pelo menos a década de 1980, autores como a psicóloga britânica Susan Blackmore e o filósofo estadunidense Daniel Dennett se encarregaram de atualizar o conceito criado por Dawkins. Eles desenvolveram e adaptaram a ideia, em anos ainda anteriores à popularização da internet, e construíram as bases para o que viria a ser reconhecido, anos mais tarde, como um campo de estudos, a memética. Pegando emprestada, de modo quase jocoso, a desinência do campo da “genética", a memética é pouco reconhecida como ramo da pesquisa científica e certamente muito disputada.
Na disputa com a corrente do determinismo genético, aquela que apregoa que os seres humanos são, acima de tudo, resultado de sua herança genética, Blackmore, por exemplo, lançará a bandeira do “determinismo memético", sustentando que os memes não apenas complementavam os genes, mas, em muitos sentidos, os originavam. Para ela, memes não devem ser encarados apenas como ideias, mas também como comportamentos adquiridos por meio de um longo processo de imitação social a que estamos todos sujeitos. Assim, ela trata como memes o “celibato" e a “castidade", assinalando para como essas práticas exercem efeitos sobre o próprio ambiente natural. Mas espere aí… Celibato? Castidade? Essas coisas são memes?
Na definição original de Dawkins, memes são ideias que se propagam pela sociedade (através de nossas redes sociais) e sustentam determinados ritos ou padrões culturais. Tomando isto como base, o “celibato", a “castidade", o “racismo" (pois é, memes não são sempre bons!), mas também o folclore, a moda, a gastronomia, e praticamente tudo o que conhecemos no nosso ambiente cultural são memes. Dos jeans rasgados à tradição de cantarolar “Parabéns a você" nas festinhas de aniversário. É claro que há uma série de críticas a esta visão, mas se queremos entender o que é um meme hoje, precisamos, antes de mais nada, compreender que os conceitos também são atualizados, ressignificados e subvertidos.
Muito antes da criação do conceito de “meme" e de sua subsequente “memetização", as ciências sociais já procuravam entender como opera a imitação e a reprodução social ‐ termos muito caros a sociólogos como Gabriel Tarde e Pierre Bourdieu. Tarde, criminologista da virada do século XIX para o XX, foi um dos primeiros sociólogos a se debruçar sobre o fenômeno do contágio e da imitação social. Ele procurou entender como e por que determinados comportamentos eram repetidos com frequência por diferentes indivíduos. Rival de outro famoso sociólogo, Émile Durkheim, Tarde recebeu críticas, à época, por empregar metáforas biológicas para explicar comportamentos sociais. Mas ele não foi o único. Outro contemporâneo do princípio do século XX, o zoologista Richard Semon, também desenvolveu uma série de estudos para demonstrar como alguns comportamentos animais assemelham-se aos comportamentos humanos e vice-versa. Em um de seus estudos mais famosos, utilizou a expressão “mneme" para designar como comportamentos adquiridos por meio da imitação e da memória social são passados adiante entre indivíduos de diferentes gerações. O conceito de “mneme" guarda uma semelhança bastante intrigante com aquele que, anos depois, Dawkins viria a cunhar. Em 1904, porém, a expressão não “pegou".
Dawkins é certamente um grande fã de paralelos entre a biologia e as ciências sociais. Não à toa, ele cria o conceito de meme para explicar basicamente como podemos utilizar a mesma “fórmula" que normalmente usamos para explicar a seleção natural a contextos culturais. Assim, se os genes são os responsáveis por transmitir nossa herança biológica de geração a geração, os memes, diz Dawkins, seriam os responsáveis por passar adiante nossa herança cultural. E, se os genes disputam entre si pela sobrevivência do mais apto, os memes igualmente deveriam atender a este mesmo princípio.
Dessa forma, para Dawkins, os memes dispõem de três características essenciais: sua longevidade, sua fecundidade e sua fidelidade. Isto é, para que “vençam" a disputa com os seus pares, eles precisam garantir que sua transmissão ao longo das gerações está assegurada (fecundidade), que cada uma de suas unidades tenha vida longa (longevidade), e que suas cópias sejam as mais perfeitas possíveis (fidelidade), de modo a evitar corruptelas no transcorrer do tempo. Observe que estas características descritas por Dawkins se aplicam também aos genes e a quaisquer outros “replicadores". Pois, no fundo, se tratam de princípios biológicos aplicados ao universal cultural ‐ o que, é claro, é uma ideia por si só tão polêmica quanto mamilos. Mas, com o passar do tempo, acabamos todos absorvendo essas metáforas, mesmo quando não inteiramente apropriadas. Ou você nunca se deu conta de que “viralizar" descreve um processo epidemiológico?
Como nas epidemias (e, por que não, das pandemias), nós seríamos “infectados" pelos memes, pois, como argumenta Blackmore, somos nada mais do que “hospedeiros" ou “máquinas de memes". Essa leitura, obviamente, foi intensamente contestada, sobretudo por prescindir da agência humana, isto é, por descrever o universo como fator das associações entre os memes e não como fruto da vontade humana.
Mas o quadro se alterou profundamente quando a internet enfim se tornou, pouco a pouco, popular. Inspirados por um debate que ganhava adesão em um certo nicho de entusiastas da tecnologia e da “cultura nerd", muitos usuários passaram a denominar de memes os conteúdos que trocavam entre si, nos fóruns e canais de comunidades online. A partir daí, não só o conceito de memes foi ressignificado, como seu campo científico se renovou profundamente. Os memes passaram a ser compreendidos não mais como uma ideia ou um comportamento, mas como um discurso, ou um modo próprio de comunicar.
Hoje, quando nos referimos a memes, não estamos mais pensando em um “replicador cultural" ou uma “unidade de transmissão de informação", mas em uma linguagem midiática. E é a partir dessa perspectiva que esse fenômeno passa a ser observado por uma série de pesquisadores oriundos do campo das humanidades digitais.
De modo bem objetivo, compreendemos atualmente os memes como uma linguagem ou um gênero comunicativo próprio do ambiente digital, e que costuma ser materializado na forma de uma imagem legendada, um vídeo viral, um bordão engraçado, ou uma animação extravagante. Além disso, grande parte da riqueza dos memes está expressa em sua característica intertextual. Eles frequentemente trazem referências à cultura pop, uma novela, uma série de tevê, um reality, ou o último acontecimento político do noticiário. Próprios do universo das comunidades online, os memes são geralmente lidos como conteúdos efêmeros, vulgarmente encarados como “besteirol" ou “cultura inútil", fruto de sua interpenetração com a linguagem do humor. Mas precisam, sim, que os levemos a sério!
O marketing e a publicidade rapidamente identificaram na linguagem dos memes um potencial para mobilizar afetos e posicionar marcas. Mas, muitas vezes, os marqueteiros não conhecem suficientemente a cultura digital e estão mesmo só interessados em “vender seu peixe". A indústria cultural, como sabemos, há muito usa de artifícios como o refrão-chiclete ou o slogan repetido à exaustão para fixar seus produtos no imaginário popular. Com os memes não é muito diferente. Há uma tentativa constante de cooptar a linguagem dos memes por parte do capital.
É o que um dos papas da cultura digital, Henry Jenkins, argumenta. Jenkins foi um dos primeiros pesquisadores a reconhecer os memes como um fenômeno nativo da era digital. E a sustentar que a “cultura do espalhável" se opõe à “cultura do grudento", isto é, que a espontaneidade dos memes deve ser devidamente distinguida da artificialidade dos meios massivos.
Guardadas as devidas proporções, a diferenciação é semelhante à empreendida pela pesquisadora israelense Limor Shifman, ao tratar da distinção entre memes e virais. Segundo ela, embora utilizemos esses dois termos de modo indiscriminado, como sinônimos, há diferenças importantes entre eles. Os virais são conteúdos produzidos por atores relevantes na cadeia produtiva e assimilados por usuários de forma massiva, geralmente em ondas de compartilhamento no modelo um-para-todos. Já os memes não são apenas compartilhados, mas reapropriados pelos usuários, de modo que seu conteúdo é parodiado, recombinado ou remixado antes de ser passado adiante. Na prática, virais se convertem rotineiramente em memes e vice-versa, mas entender a diferença entre esses dois fenômenos nos permite enxergar como e por que os memes são tão importantes culturalmente. Por exemplo, é através dessa distinção que somos capazes de perceber que, quando nos referimos a um viral, como o videoclipe de Gangnam Style no YouTube ou aquele áudio de um humorista fazendo piada que recebemos de grupos no WhatsApp, estamos sempre falando de um único conteúdo. Por outro lado, quando falamos em memes, como o Willy Wonka Irônico ou os bordões de Bela Gil, raramente estamos fazendo menção a um só conteúdo, se não a um grupo ou uma coleção deles.
Shifman recupera um argumento originalmente desenvolvido pela memética dos anos 1980 e já esboçado pelo próprio Dawkins: a ideia de que, como os genes, os memes atuam em conjunto, formando cadeias complexas (ou “memeplexos"). Dessa forma, diz, é impossível traduzir um meme como um conteúdo ou uma peça exclusivamente. LOLcats não são UMA foto de gato fofo, nem “My parents are dead“ é um único quadrinho fora de contexto de Batman estapeando Robin. Memes não são conteúdos individuais e isolados, mas complexos informacionais que só encontram significado em conjunto. Quando um conteúdo sozinho é disseminado, ele, na verdade, não é um meme, mas um viral. Os memes são CONTEXTO.
Só colocando em contexto conseguimos apreender a graça daquelas tirinhas satíricas com personagens mal-desenhados que infestam a internet. Ou entender por que, afinal de contas, tanta gente compartilha memes de bom dia nos grupos de família. Só olhando para o conjunto entendemos por que tantos movimentos sociais têm reunido depoimentos íntimos associados a uma hashtag para levantar suas pautas no Twitter. E por que grupos reacionários usam esse mesmo expediente do lúdico e da brincadeira para perpetrar preconceitos. Nos últimos dez anos, os memes ganharam uma importância política e social gigantesca. Mas há, ainda, aqueles que se mantêm ressabiados, como se tudo não passasse de uma bobagem frívola ou no máximo uma tática diversionista.
Somente reconhecendo, como fazem Michele Knobel e Colin Lankshear, os memes como uma nova forma de letramento midiático, é que poderemos desvendar suas nuances. Este projeto se propõe a quebrar esta barreira de preconceitos, discutindo e teorizando a respeito do universo dos memes, e investigando, a partir de uma experiência lúdico-interativa de produção de conteúdo para o acervo de um webmuseu, quais os mecanismos de interação presentes nos memes, qual a motivação dos usuários em produzi-los e compartilhá-los e como podemos compreender este fenômeno e seu papel na formação de identidades e representações coletivas da cultura contemporânea.
Se você ainda se pergunta “por que memes?", talvez seja preciso perguntar de volta: “e você? onde esteve nos últimos anos?"