O vídeo abaixo apresenta uma paródia da música Bella Ciao, famosa canção popular que se tornou um hino da resistência italiana contra o fascismo de Mussolini e das tropas nazistas. De lá pra cá, a canção circulou por manifestações de trabalhadores e estudantes na Itália, Buenos Aires, Istambul e Grécia, reforçando sua popularidade ao tornar-se o hino dos protagonistas da série La Casa de Papel, distribuída pela rede de streaming Netflix. Sua popularidade, aqui no Brasil cresceu junto com o movimento Mulheres Contra Bolsonaro, que surge como uma ação coletiva conectada, envolta por memes que mobilizam uma ação popular. A luta das mulheres brasileiras foi um marco das Eleições de 2018, levando milhares de simpatizantes da causa #EleNão para as ruas, que entoavam a canção em uma tentativa de alertar sobre os perigos da candidatura de Jair Bolsonaro (PSL).
Bolsonaro teve uma campanha atípica, com pouco tempo de propaganda na televisão, e um redirecionamento estratégico após o atentado sofrido pelo candidato, que o preveniu de enfrentar os demais concorrentes ao cargo nos debates televisivos, e, ao mesmo tempo, garantiu a ele uma cobertura espontânea nas emissoras de televisão, que noticiavam sua recuperação. Some-se a isso a campanha fortemente polarizada nas mídias sociais. Em grande medida, sua popularidade conjugou um clima de animosidade e uma forte campanha negativa em relação ao Partido dos Trabalhadores, e suas promessas de campanha envolviam a proposta de um governo liberal na economia e conservador nos costumes, sendo identificado como uma ameaça aos direitos de diferentes minorias.
O movimento Mulheres Contra Bolsonaro, articulou-se por meio de um grupo fechado no Facebook para reunir mulheres contra Jair Bolsonaro e ganhou notoriedade em setembro de 2018 quando, em uma invasão da oposição, seu nome foi alterado e diversas usuárias acabaram saindo do espaço. Esse movimento gerou a criação de diversos outros grupos contra o candidato e manifestações nas ruas das principais capitais do Brasil e do mundo, articuladas por meio da hashtag #EleNão, e variantes como #EleNunca, que, lidas como memes que promovem uma espécie ação de base (grassroots), deram origem a um movimento de crítica à candidatura de Bolsonaro. As hashtags foram adotadas por anônimos, celebridades e, até mesmo, membros de outras minorias, como o movimento LGBTQ+, indígenas e quilombolas, que expressavam, por meio de depoimentos pessoais, suas razões para não votar em Jair Bolsonaro. A partir dessas hashtags, refletimos sobre como os memes podem servir como estratégias que promovem uma ação popular e observamos seus principais usos e apropriações. O #EleNão pode ser caracterizado também como um evento, na esteira de exemplos semelhantes, que propõem quadros de ação pessoal. Casos como Los Indignados, na Espanha, o movimento Occupy, nos Estados Unidos e as Jornadas de Junho de 2013, no Brasil, são episódios que propuseram quadros de ação pessoal a partir de contestações individuais em manifestações físicas nas ruas de grande metrópoles do Ocidente.
O crescimento de lutas por direitos civis, por meio dos movimentos sociais, ganhou força na década de 60, quando manifestações em torno do mundo, passam a exigir não apenas reconhecimento de direitos mas maior representatividade política. Os movimentos negro e feminista, que surgem com força nessa época, marcam o que seria o início de uma revolução em diferentes nichos marginalizados. Nas décadas seguintes, minorias como os indígenas, quilombolas e LGBTQ+ performam protestos demandando inclusão.
As recentes formas de mobilização e organização social são herdeiras dos protestos no Mundo Árabe e na Europa, e buscam maneiras de aprofundar o debate sobre democracia, expandindo e ampliando a esfera pública ao ambiente online. Nesse meio, cidadãos comprometidos podem se juntar às lutas e projetos, em diferentes lugares do mundo. O #OccupyWallStreet é um dos primeiros movimentos a evidenciar como nova arena as mídias sociais, gerando um espaço híbrido de conversação e mobilização social. Em ambos os casos, as articulações online deram suporte à rede de pessoas que se reuniram e ocuparam espaços públicos.
O compartilhamento de experiências pessoais por meio de memes de ação popular procura engajar os usuários em ações políticas através do compartilhamento de experiências individuais. A partir dessa ótica, o meme de internet pode servir como articulador de debates com vistas ao reconhecimento de atores ou grupos sub-representados.
Limor Shifman (2014) afirma que os memes podem ser definidos como conteúdos da cultura popular que, circulados, imitados ou transformados pelos usuários, criam uma experiência cultural compartilhada. Dessa forma, sua sugestão é de que olhemos para o fenômeno como um grupo de itens que são criados com consciência mútua e que compartilham características em comum.
Os memes compreendidos pela campanha #EleNão assumem diferentes formatos, das hashtags (sendo as principais engajadoras da campanha a #EleNão e #EleNunca) às imagens e vídeos, e compõem paródias a partir de outros textos (como a paródia à canção Bella Ciao, que tornou-se o hino do movimento nas ruas). Seu conteúdo varia de acordo com sua forma, mas identificamos muitos casos de depoimentos e desafios entre celebridades a favor do movimento, imagens persuasivas com frases ditas por Bolsonaro que argumentam contra sua capacidade de governança e depoimentos em texto, que apresentavam os motivos pessoais de cada mulher para não votar “nele, não”, acompanhados da hashtag da campanha.
Apesar de serem conhecidos por explorarem o uso do humor, os memes de internet podem divergir nesse sentido, especialmente quando falamos de temáticas políticas, que podem ser divididas dentro das três categorias não excludentes de: memes persuasivos, memes de discussão pública e memes de ação popular.
Os memes persuasivos são estrategicamente construídos para serem viralizados, geralmente são imagens bem trabalhadas, que têm intenção de convencer e informar, como no caso dos memes com frases racistas, misóginas ou xenófobas do próprio Bolsonaro ou com frases no estilo call-to-actions (chamadas para ações). Os memes de discussão pública são os que são tidos como mais humorísticos, dentre os exemplos, sendo uma forma do usuário fazer e compartilhar comentários sobre política e se engajar em discussões públicas, esses memes são caricatos e geralmente brincam com eventos e situações capturadas e brincam com momentos ou frases ditas no meio político. No caso do #EleNão, vimos alguns desses memes, por exemplo, desenvolvendo piadas a partir do posicionamento conservador do candidato.
Os memes de ação popular são caracterizados por nascerem de um sentimento coletivo ou mobilização por uma causa e são mais comumente encontrados na militância política. Eles também se utilizam, em muitos casos, do depoimento pessoal como forma de ação coletiva e, por isso, podem ser definidos como dinâmicas de ações coletivas mediadas que, isoladamente, mal podem ser reconhecidas como memes. Os memes de ação popular do #EleNão agiram principalmente através de depoimentos pessoais, que acompanhados da hashtag, relatam parte da história da pessoa e seus motivos pessoais para não eleger o candidato. Trata-se de formato que se popularizou dentre as manifestações online de cunho feminista.
A campanha #MeuAmigoSecreto surgiu em 2015, próxima ao período de festas de fim de ano. A hashtag acompanhava relatos que contavam casos de amigos, familiares e companheiros que cometiam atos machistas, misóginos e/ou homofóbicos no dia-a-dia. Já a hashtag #PrimeiroAssédio foi lançada pelo coletivo feminista Think Olga, após diversos casos de assédio direcionados a uma participante, de apenas 12 anos, do programa Masterchef Júnior. Na ocasião, o coletivo incentivou, a partir da hashtag, que mulheres dessem seu relato de como e quando foi o seu primeiro caso de assédio. Como exemplo de memes de ação popular na luta de povos indígenas, temos casos como Somos Todos Guarani Kaiowá, tribo que vive um genocídio de sua linhagem e, como forma de alertar a respeito desse extermínio que vem acontecendo, usuários de sites de redes sociais passaram a inserir no campo do sobrenome o nome da tribo Guarani Kaiowá e também no nicho LGBTQ+, com ações como It Gets Better, investigado por GAL et al (2016).
No caso do meme It Gets Better, há uma matriz de respostas meméticas que formula uma identidade coletiva, que surge a partir da produção de vídeos com relatos pessoais de pessoas LGBTQ+ a respeito de como as coisas melhoram (do termo em inglês It Gets Better) com o passar dos anos e conforme vão se aproximando de sua comunidade.
Para Gal et al. a formação da identidade coletiva é um processo de produção contínua de performances e validação de valores, códigos e normas através do discurso. Seu argumento é de que a inclusão ou exclusão de um indivíduo em uma comunidade pode definir sua posição social e, também, ajudar na construção do coletivo. E apontam as tecnologias digitais como facilitadores na acessibilidade das minorias diante do discurso público. Nesse sentido, as mídias digitais possibilitam a reunião de grupos em esferas alternativas, que criam narrativas que “se desviam da linha hegemônica dominante" (GAL et al, p. 3, 2016). Essa mídia, chamada por eles de mídia participativa, aumenta as possibilidades de representações de identidade diversificadas.
Apontamentos como esse são importantes para nos lembrar de que forma os memes servem como ferramenta de negociação entre as normas sociais e sua consolidação. O processo pelo qual normas sociais são consolidadas é caracterizado pelo padrão de evolução memética. Dessa forma, mesmo que memes sejam peças sem um autor definido, que circulam pela internet e se estabelecem dentro de certas comunidades virtuais, em muitos casos, refletem o background social vivido por quem o criou. Em outros casos, os memes podem ser usados como forma de subversão, criando um discurso polivocal que expressa múltiplos viéses ideológicos.
O conceito de reconhecimento tem sido amplamente discutido ao longo das últimas décadas. Segundo a teoria de reconhecimento de Taylor, é possível perceber algumas correntes políticas, que giram em torno da exigência de reconhecimento, advinda das forças propulsoras dos movimentos políticos, em favor de grupos minoritários, como o feminismo. A ideia de que nossa identidade é moldada por parte do reconhecimento (ou a ausência dele), pode gerar uma distorção, caso as pessoas ou a sociedade lhes devolvam um quadro desmerecedor ou desprezível. Taylor parte assim do não-reconhecimento para explicar como as formas de opressão podem aprisionar e causar danos a alguém que esteja envolvido numa modalidade distorcida ou redutora. Esse não-reconhecimento, pode causar às vítimas ódio por si mesmas e, por isso, devemos conceder o devido reconhecimento às pessoas.
Taylor argumenta que a democracia introduz a política do reconhecimento igualitário, que assume formas de exigências na igualdade de status social entre as diferentes culturas e gêneros. Esse argumento é interessante pois identifica que a descoberta da identidade passa pela negociação por meio do diálogo com o outro. De forma semelhante, os memes de internet, em especial os de ação popular, operam dentro das comunidades virtuais por onde circulam informações que são reconhecidas por um grupo minoritário que é afetado pela causa ou assunto.
As reivindicações por direitos de minorias, no ambiente online, reavaliam estigmas e marginalizações. Os memes surgem como canal de articulação dessa participação na dimensão sociocultural, agindo como ferramenta discursiva dentro do meio virtual.
Grupos ou indivíduos sub-representados ou desrespeitados dentro do âmbito social, que buscam por reconhecimento, encontram nos memes uma ferramenta de potencial ainda pouco explorado porém com exemplos significativos de mobilizações, por todo o mundo.
Apoiadores de Bolsonaro relacionam o movimento Mulheres Contra Bolsonaro a um crescimento na intenção de voto que o candidato teve durante o segundo turno de campanha, travado contra Fernando Haddad (PT). Posto desta forma, #EleSim teria sido uma ação mais eficiente do que #EleNão. Entretanto, o que procuramos levantar é a defesa de que o movimento e os memes vinculados a ele ganharam notoriedade como estratégia da luta democrática por direitos, com vistas a agendar a opinião pública.
O meme, nesse sentido, tem sua eficácia evidenciada, independentemente do resultado final das eleições, pois demonstra como o engajamento popular se estende para o modos de expressão da vida cotidiana, e, ao mesmo tempo, funciona como crítica diante da injustiça social de gênero, operando como forma de transgressão do sujeito político. Um meme de ação popular pode, dessa forma, agir e ter impactos positivos – como a abertura de diálogos entre grupos, mesmo que não gere resultado imediato no cenário político-eleitoral.
O movimento Mulheres Contra Bolsonaro, mais do que se colocar contra um candidato por meio de manifestações públicas, gerou um ambiente de circulação informacional e constituiu uma rede de sujeitos políticos que se mantém ativa, fazendo oposição ao governo, por exemplo, disseminando memes informativos com o objetivo de combater a disseminação de fake news, levantar debates, e compartilhar seus relatos pessoais de forma a lutar contra a opressão e o não-reconhecimento do Estado.
Referências
GAL, Noam; SHIFMAN, Limor; KAMPF, Zohar. “It Gets Better”: Internet memes and the construction of collective identity. New Media & Society. v. 18, n. 8, p. 1698-1714, 2016.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003).
SHIFMAN, Limor. Memes In Digital Culture. MIT Press, 2014.
TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. Argumentos filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, p. 241-274, 2000.