Problematizando o que é meme II: o humor

04 abr
Por
Viktor Chagas
Professor e pesquisador da UFF.

Pode parecer estranho, mas nem todo meme é engraçado… Muito embora o humor seja um artifício muito comum aos memes ‐ mesmo quando se trata do chamado “humor negro" ‐, nem todos os memes são bem-humorados.

Na década de 1990, pesquisadores como Susan Blackmore já alertavam para o fato de que memes nem sempre são positivos. Ela, é claro, se referia a memes como um fenômeno distante do universo que ora estudamos. E utilizava referências como o nazismo e o racismo, para dizer que ideias negativas e discriminatórias se propagam tanto quanto ideias positivas. Para nós, memes são peças típicas da cultura popular da internet, e talvez por isso estejamos acostumados a associá-los com o humor.

Limor Shifman indica que o humor confere positividade a uma história. E há uma tendência generalizada, apontada segundo a pesquisadora por trabalhos como o de Jonah Berger e Katherine Milkman, para que usuários compartilhem conteúdos com teor positivo mais do que conteúdos com teor negativo. Berger e Milkman elencam seis fatores como motivações para o compartilhamento de conteúdos nas redes: a positividade inspirada (positivity), o teor emocional (provocation), a simplificação e clareza narrativa (packaging), a participação ou interação com o receptor (participation), o prestígio do autor original (prestige) e o tempo e o espaço legados a ele (positioning). O humor responde destacadamente a pelo menos três destes aspectos (positivityprovocation e packaging). Ao invés de atestar uma apreensão acrítica da realidade, o humor é, para Geniesa Tay, um veículo para que a política seja explorada, incorporando elementos da cultura popular e do entretenimento midiático e atuando para incluir o cidadão comum em processos que requeiram maior participação.

Se a eficácia de um meme pode ser medida com base na quantidade de “novas referências, apontamentos e reinterpretações feitas" sobre ele, seu valor não se resume a isto. Como produto cultural, um meme não pode ser desvinculado das experiências sociais de seu criador. Ele depende de um repertório cultural extraído das relações sociais, memórias, referências históricas, geográficas, econômicas, e aspectos conjunturais específicos. O internauta posta, compartilha e curte o que julga interessante (positivity), o que reflete suas impressões sobre um tema (packaging), o que o afeta ou o sensibiliza de alguma forma (provocation), por isso o humor é uma característica tão presente nos memes. Mas que humor é este?

Em uma análise de conteúdo com vídeos do YouTube, Shifman propõe que o humor das redes sociais online recorre sistematicamente a alguns elementos. Segunda a autora, ele (1) se baseia ou é estrelado geralmente por pessoas comuns, (2) questiona ou ridiculariza o lugar da masculinidade, (3) investe em uma comicidade de incongruência (i.e. quebras de expectativas), (4) em linguagem simples e popular, (5) permeada de repetitividade, e (6) com ênfase em situações excêntricas ou fora do comum. De antemão, algumas dessas características podem ser relativizadas para os conteúdos políticos que vamos investigar.

Em primeiro lugar, é comum a percepção, não somente em Shifman, mas também em uma série de outros estudos que se circunscrevem ao universo cultural, de que os conteúdos em que a figura do “amador" é enfatizada, em detrimento do “artista profissional", são os mais apropriados por outros internautas. Se isto é verdade, porém, para o cenário da cultura, na política, o humor se dá deslocando-se de contexto a figura do político profissional, raramente ocupando o eleitor o centro da cena. Não percebemos tampouco nenhuma evidência de que a figura masculina e sua exposição ao ridículo seja um fator preponderante nestes conteúdos. As demais características citadas por Shifman encontram alguma repercussão nos dados que coletamos ‐ de modo que o pesquisador da área deve ter sempre em conta a importância de uma análise particularizada, vez que memes são invariavelmente fruto de um contexto próprio.

Com relação ainda aos elementos destacados por outros autores, ressaltamos, em acordo com a pesquisadora Simone Pereira de Sá, o papel desempenhado pelo “gesto performático", isto é, um “gesto ou conjunto gestual que define de forma sintética uma performance, transformando-a numa marca identitária". Este tipo de humor é marcado por justaposições/montagens ou o congelamento de uma ação a partir de um único frame, como lembra Shifman (2014), dando origem a piadas situacionais, reações de “curta duração" ou “pequena importância política". Como veremos, este tipo de humor é não apenas um dos mais frequentes na amostra coletada, mas também um dos mais marcantes, vista a sua repercussão no ambiente das mídias tradicionais. Além disso, como indica Erick Felinto, a “paródia do publicamente conhecido" é uma das marcas claras da produção destes memes. Diferentemente do que notam estes dois autores, porém, os conteúdos circulados por internautas sobre o universo da política não se caracterizam por uma demarcação clara de território entre o que é conteúdo gerado profissionalmente ou não. Na maioria das vezes, é difícil precisar, mesmo nos casos de infográficos bem elaborados e fotografias posadas e retocadas de candidatos, o que é conteúdo publicado/estimulado estrategicamente pela campanha e o que é conteúdo gerado por usuário.

Esta diferença entre o que se avoluma quando lidamos com conteúdos relacionados à política e com conteúdos relacionados à cultura é menos explicada pela lógica da paródia e do spoof, como propõe Felinto, e mais pela lógica do kitsch, como o define Luis Felipe Miguel. O kitsch político, diz Miguel, é “uma das formas-padrão do repertório do discurso político, quando dirigido aos cidadãos comuns, nas democracias representativas contemporâneas", uma espécie de jogo de forças constante entre distinção e identidade. Pensado como estratégia discursiva, o kitsch emprega signos capazes de marcar diferenças e conferir à audiência “a impressão de assistir à ‘alta política'". O discurso pomposo e empolado dos candidatos, por exemplo, se encaixa perfeitamente nessa categoria, visto que eleva o político a um patamar diferenciado em relação ao eleitor, contribuindo por sua vez para reforçar o reconhecimento por parte deste de que o político é um quadro capacitado. O kitsch, então, como afirma Miguel, revela os desafios da estratégia política no cenário dos novos meios de comunicação de massa: se por um lado, o político busca ratificar sua posição de distinção, por outro, a competição eleitoral o obriga a fazer uso cada vez mais intenso do marketing e das técnicas publicitárias, de modo que ele oscila entre um extremo – o da autenticidade inalcançável, incomunicável com as bases – e outro – o da posição vulnerável como produto fútil, engendrado pelos “marqueteiros". A saída não é simples.

Na lógica dos memes, o humor flerta com o kitsch: a predominância de uma linguagem popular e de um apelo visual que banaliza se não ridiculariza o político compõem uma estratégia (ou contra-estratégia, na medida em que circulada pelo “internauta casual") de aproximação, que exalta o fait divers, a piada situacional, os elementos da cultura popular, incluindo comparações – fisionômicas e contextuais –, e que contrasta e compete com a radicalização ou mesmo a disputa retórico-discursiva da militância espontânea em torno de “formas morais". A expressão é tomada emprestada de Lattman-Weltman, em sua análise sobre as eleições municipais cariocas de 2008, quando a chamada “Onda Verde” impulsionou o então candidato à prefeitura Fernando Gabeira a uma surpreendente disputa de segundo turno com o candidato governista (e atual prefeito) Eduardo Paes. Na ocasião, o surgimento de uma militância espontânea oposicionista chamou a atenção dos principais analistas políticos e evidenciou o papel em marcha da internet como espaço de disputas recém-incorporado ao cenário eleitoral. Funcionando como elementos de crítica e banalização da política ao mesmo tempo em que facilitam o processo de polarização bipartidária, estes memes giram em torno de temas que estão na agenda pública da política nacional. Eles combinam distinção e identidade, e parecem assumir, para si e à sua maneira, a tarefa de resolver o problema da adequação do discurso político aos novos meios.

Mas também no que diz respeito ao humor, memes políticos alargam algumas fronteiras. Pois
ao passo que a maior parte dos memes de internet apresentam deliberadamente tipos bem-humorados, os memes políticos guardam uma particularidade própria. Eles podem ser extremamente sérios.

Qualificar um meme como “sério" implica não apenas em um questionamento sobre o estatuto do meme mas em admitir que estes conteúdos podem compor um caldo cultural denso no processo de formação da opinião pública. Afinal, ainda que o humor, como destacamos, possa funcionar como elemento de crítica, mais do que como mera frivolidade, os memes que trazem piadas não conseguem se distanciar eles próprios da crítica: são piadas ou são propaganda? Quando se isola o componente do humor, o que sobra é essencialmente o apelo e a retórica do meme, seus elementos de persuasão e as dinâmicas de ação coletiva que inspiram.

Tome-se como exemplo a sequência de memes abaixo, coletados durante as Eleições 2014.

No primeiro caso, temos um infográfico comparativo entre duas candidaturas. Memes podem ser estrategicamente construídos para serem disseminados e/ou pretender angariar apoio a uma determinada candidatura, com a intenção de convencer o eleitor. São, é claro, neste contexto, mais virais do que memes propriamente, mas ainda assim, enquanto peças reapropriadas, muitas vezes pela própria militância, esses conteúdos propagam estratégias de campanha e estendem a disputa eleitoral e novos espaços.

No segundo, um tipo de meme peculiarmente difundido durante os debates eleitorais em 2014. Fotos que enquadravam a própria televisão transmitindo o debate. Eram usuários que queriam mostrar a outros que estavam assistindo. Memes se caracterizam por uma construção coletiva de sentido, mobilizando o cidadão comum. Alguns utilizam frases de efeito, como “Eu sou o 1%" ou “Fora PT!" e têm relação com a militância partidária, embora não tenham necessariamente relação com o partido em si. Outros simplesmente apontam para comportamentos coletivos reiterados, como as famosas selfies.

A política é plena de memes, desde antes da internet, graças à subversão de jingles e bordões dos candidatos. Basta lembrar do jingle “Ey-Ey-Eymael" ou do bordão “Meu nome é Enéas", para identificar como os eleitores reproduzem e se reapropriam dessas peças de marketing de forma divertida. Mas nem só da política folclórica vivem os memes. E, pelo que temos observado, tanto mais radicais os ânimos, maior a incidência de memes que se dispõem como peças persuasivas de propaganda política. Compreender estas peças como memes não é reduzi-las em sua significância, mas admiti-las como conteúdos culturalmente e coletivamente elaborados. Do #vemprarua às “Diretas Já"…

Referências

E. Felinto, “Videotrash: o YouTube e a cultura do “spoof" na internet,” Galáxia, iss. 16, 2008.

F. Lattman-Weltman, “O Rio nas cruzadas: comunicação democratização e usos da internet numa eleição carioca,” Eco-pós, vol. 12, iss. 3, pp. 27-47, 2009.

G. Tay, “Embracing LOLitics: popular culture online political humor and play,” Dissertação de Mestrado PhD Thesis, Cantuária/Inglaterra, 2012.

L. F. Miguel. O Kitsch Político. RBCP. 2011.

L. Shifman, Memes in digital culture, Cambridge/Inglaterra e Londres/Inglaterra: MIT Press, 2014.

L. Shifman, “An anatomy of a YouTube meme,” New media & society, vol. 14, iss. 2, pp. 187-203, 2011.

R. Recuero, “Memes em weblogs: proposta de uma taxonomia,” Revista famecos, iss. 32, pp. 23-31, 2007.

S. P. de Sá, “The Numa Numa Dance e Gangnam Style: vídeos musicais no Youtube em múltiplas mediações,” Galáxia, iss. 28, pp. 159-172, 2014.

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