Pesquisa com memes: serious business

04 abr
Por
Viktor Chagas
Professor e pesquisador da UFF.

Memes são geralmente estudados como um conteúdo raso e despretensioso, simples manifestação de expressão, conteúdo jocoso e superficial. Mas esta percepção parcial é fruto de uma compreensão equivocada sobre o fenômeno, como “cultura inútil" ou “besteirol". Parte desta compreensão se deve à ausência de estudos que se debrucem sobre o universo poliexpressivo e polissêmico dos memes – eminentemente um novo gênero midiático, como argumentam Knobel e Lankshear – a partir de um olhar sobre usos e apropriações dessas produções em contextos reconhecidamente políticos.

Os exemplos não são poucos: das imagens com o então candidato à presidência da República em 2010, José Serra, às páginas de perfis ficcionais, como Dilma Bolada, no Facebook. Mesmo a adoção do sobrenome “Freixo", como demonstração de apoio ao político nas últimas eleições municipais do Rio, ou a disseminação de correntes de e-mails como as que alardeavam os riscos de se eleger a então candidata Dilma Rousseff, uma “ex-terrorista", ao Palácio do Planalto. Também a campanha #forasarney no Twitter em 2009, ou a expressão “coxinha" que se vulgarizou como alcunha para manifestantes conservadores.

Os memes têm influenciado a cena política do país a mais tempo do que imaginamos. Como excelentes termômetros eleitorais, eles dinamizam e dimensionam a opinião pública a respeito de um dado candidato, partido ou uma proposta específica. Funcionando como comentários situacionais, escárnio ou manifestação de apoio explícito, os memes são capazes de descortinar de forma bastante evidente o comportamento das massas em um cenário eleitoral. Estudá-los como gênero midiático pressupõe tentar compreender as motivações e manifestações que são expressas por meio destas peças de conteúdo e comportamentos específicos. Por esta razão, temos empreendido pesquisa que procura investigar que tipo de conteúdo é difundido (e não quem o difunde).

Se é verdade que nem todos os memes apelam diretamente ao humor, é preciso também que entendamos que a dinâmica de circulação dos memes é um sério objeto de estudo. Tay lembra que, nesse sentido, compreender as relações entre a cultura pop e cultura mainstream auxilia o pesquisador a se preparar para o questionamento sobre a relevância de sua pesquisa. Com o exemplo de Dick Cheney que chegou a ser comparado com o vilão Darth Vader por seus opositores e depois assumiu bem-humoradamente a caracterização, a autora identifica nesse processo quase antropofágico (palavras minhas!) a importância da cultura popular como elemento de nossa cultura política.

Lula e Haddad, diga-se de passagem, também foram alvo de comparações semelhantes quando selaram aliança com Maluf para disputa à Prefeitura de São Paulo, nas Eleições em 2012. Na ocasião, Maluf aparecia em montagens como Darth Vader. Seja através da criação de arquétipos ou de narrativas mitológicas, a cultura popular há muito tempo interpenetra e é interpenetrada pela cultura erudita. Por que então diferenciamos a cultura popular da internet?

Há algum tempo, em um seminário sobre a comunidade da Wikipédia, um grupo de professores discutia os critérios de relevância adotados pelos usuários, indicando que a enciclopédia virtual adorara padrões próximos ao de uma enciclopédia tradicional, para se afirmar como produto de referência. Nós então discutíamos e problematizávamos o que era e como operava este critério de relevância. Foi então que eu surgi com o tema dos memes, alegando que era importante documentar os memes brasileiros em uma enciclopédia como a Wikipédia. Muito embora àquela altura já existissem sites que se preocupam em registrar memes e investigar suas origens, a Wikipédia, especialmente a Wikipédia lusófona, ainda encontrava certa resistência a isso. E, para minha surpresa, os professores com os quais eu conversava também questionaram a legitimidade de minha sugestão. “Mas por que memes?" “Memes não são relevantes!", eles diziam. Lembro particularmente de uma professora de História Antiga, que afirmava que memes não são um fenômeno cultural digno de figurar em uma enciclopédia.

Eu tomei como exemplo a própria Wikipédia, em sua versão inglesa. O verbete sobre Galvão Bueno, locutor esportivo da Rede Globo de Televisão, na enciclopédia, traz como um dos tópicos principais, logo abaixo dos comentários sobre sua trajetória profissional e pessoal, um destaque sobre o meme “Cala a boca Galvão". O meme, que circulou em 2010 no Twitter, a partir de uma hashtag (#calabocagalvão) se tornou uma das maiores piadas internas do mundo, ao propagar para estrangeiros não-falantes do português a versão de que Galvão, na verdade, seria uma espécie de pássaro em extinção, e que a expressão “cala boca" seria uma campanha para salvá-los. Praticamente anônimo no exterior, Galvão Bueno alcançou grande reconhecimento através da sátira ‐ a ponto de ver seu verbete trazer uma explicação detalhada sobre o acontecimento. Na Wikipédia em português, no entanto, eu disse àqueles professores, não havia qualquer registro do meme, uma piada brasileira. Alguns meses depois, em outubro de 2012, o verbete sobre Galvão Bueno em português introduziu algumas passagens sobre o episódio. O trecho da Wikipédia em inglês foi publicado em maio de 2011. Por que, afinal, não podíamos ter memes na Wikipédia? A Wikipédia é séria demais para isso? Memes não são relevantes culturalmente?

Ouço todos os dias estas mesmas perguntas. Muitas vezes de autoridades que estudam a cultura popular. São pesquisadores que investigam o folclore e o patrimônio imaterial, outros que analisam a cultura urbana, o funk e o gosto popular.

Estudar memes é compreender que, como peças históricas, estes conteúdos são reveladores de nossos hábitos e nossa cultura. Escolher estudá-los, contudo, é invariavelmente sofrer duas frentes de preconceito: a primeira, de quem não reconhece na cultura popular uma instância da nossa própria cultura; a segunda, de quem a estuda de forma engessada e não percebe que não há limites para a cultura popular.

Referências

C. Lankshear and M. Knobel, “Online memes affinities and cultural production,” in A new literacies sampler, M. Knobel and C. Lankshear, Eds., Nova Iorque/EEUU: Peter Lang, 2007.

G. Tay, “Embracing LOLitics: popular culture online political humor and play,” Dissertação de Mestrado PhD Thesis, Cantuária/Inglaterra, 2012.

H. Horst, “Free social and inclusive: appropriation and resistance of new media technologies in Brazil,” International journal of communication, vol. 5, pp. 437-462, 2011.

K. Miltner, “SRSLY phenomenal: an investigation into the appeal of LOLcats,” Dissertação de Mestrado PhD Thesis, Londres/Inglaterra, 2011.

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