O que faz de um meme um meme? A pergunta não deve soar estranha ao pesquisador que investiga a natureza desse tipo de fenômeno, pois nós a ouvimos constantemente quando apresentamos nosso objeto a ouvidos curiosos. “Ok. Você pesquisa memes. Mas o que é um meme?" Nós procuramos responder a esta questão de forma detalhada em um dos textos de apresentação deste projeto. Mas o cotidiano da pesquisa nos leva a questionar nossos pressupostos dia após dia.
Há duas premissas que devem ser desconstruídas quando buscamos precisar conceitualmente o que é um meme. Em primeiro lugar, é preciso deixar de lado a definição que atrela o meme à lógica de uma unidade de reprodução, como descreveria Dawkins. Esta é, como adverte Shifman, uma característica definidora dos memes de internet, enquanto dinâmicas de reapropriação ‐ o que Lessig chamaria de remix e Debord de détournement. Memes não se tratam de unidades, peças avulsas e isoladas, com significado intrínseco. Ao contrário, atuam sempre em grupos, e se caracterizam por ganhar contexto de acordo com o olhar sobre o conjunto.
O outro ponto fundamental é que os memes devem ser compreendidos como um novo gênero midiático, conforme Shifman, ou ainda como uma nova linguagem, que requer uma nova experiência de letramento, como sugerem Knobel e Lankshear. Isto implica não apenas em um know-how absolutamente “técnico", conforme Jenkins, mas sobretudo em uma expertise cultural, que favoreça o reconhecimento de referências, lembram novamente Knobel e Lankshear.
Mesmo, porém, aqueles que estão habituados a pensar os memes dentro de seu contexto e como gênero midiático, produções típicas da era digital, não raro avaliam estes conteúdos a partir de seu formato final. O resultado é uma leitura que costuma associar a ideia de meme a um subgênero específico, como os image macros, os exploitables, ou mesmo os look-alikes. Os macros se caracterizam pela presença de legendas sobrepostas à imagem. Exploitables são elementos destacados de uma imagem sobrepostos a outra. E os look-alikes são comparações entre dois atores e/ou dois personagens em paineis duplos. Em todos estes padrões, o pesquisador imediatamente associa o meme ao produto individual e com significação própria.
A pesquisa com memes políticos que circularam durante as Eleições 2014, porém, tem nos apresentado uma série de questionamentos sobre esta rígida compreensão. Durante o último ano, recolhemos cerca de 6 mil imagens que foram publicadas no Twitter no decorrer dos debates televisivos. A análise destas imagens tem se apresentado como um trabalho eminentemente de análise conjuntural. E tem sido surpreendente.
Entre as imagens analisadas, há uma série de fotografias com legendas (os chamados image macros), montagens que utilizam sobreposições (os exploitables), selfies e outros gêneros de memes, incluindo um contingente de peças que, em princípio, questionam o próprio status como meme. Isso porque, ao menos para este momento atual, a pesquisa não se preocupou em avaliar quais dentre estas imagens obteve maior ou menor grau de compartilhamento, qual foi mais ou menos reapropriada e serviu de insumo a outras postagens, e mesmo quais eram os tweets (textuais) que acompanhavam estas imagens. À primeira vista, algumas destas imagens se apresentam como registros visuais descontextualizados. Um olhar mais atento, porém, identificará que uma imagem aparentemente descompromissada é capaz, na dinâmica de memes replicados e cujo conteúdo é culturalmente compartilhado, de gerar respostas mais elaboradas.
Na sequência abaixo, por exemplo, temos uma imagem, originalmente postada logo nos primeiros minutos do primeiro debate eleitoral de 2014, uma reprodução de um frame do antigo seriado “Família Dinossauros". A imagem deu origem a uma série de macros e look-alikes com a candidata Marina Silva, como se vê logo ao lado.
Uma compreensão imediatista sobre o fenômeno dos memes tenderia a considerar somente as duas últimas imagens na sequência acima como memes. Como a primeira, tivemos, em nossa coleta, uma série de outras imagens aparentemente descontextualizadas. O olhar atento, contudo, notará referências diversas e diferentes candidatos. No entanto, a classificação não nos parece ser simples.
Mesmo que a análise desconsidere o texto que eventualmente teria complementado a imagem publicada no tweet original, a fotografia por si só traz elementos que fazem alusão a um conjunto de referências culturais, de tal maneira que não caracterizá-la como meme nos devolve a pergunta: o que é um meme?
Se consideramos que um meme é todo e qualquer conteúdo replicado por outros usuários, caímos de volta na lógica de diferenciação entre memes e virais, o que nos parece contraproducente. Em contrapartida, se consideramos que a imagem em questão não é um meme mas poderia vir a se tornar um, compondo com outras imagens ou elementos textuais um conjunto memético harmonizado, deixamos de responder à pergunta que segue: quando um meme se torna um meme?
A resposta a estas duas questões não é fácil. Antes de mais nada, é preciso reforçamos o entendimento de Shifman sobre a necessidade de avaliarmos os memes não como unidades de conteúdo isoladamente apreensíveis, mas como conjunto semântico, coleção, sem o que não é possível alcançar seu significado. Depois, é preciso entender que o estudo dos memes obedece às dificuldades impostas por qualquer análise de conjuntura. Muito embora, eles se apresentem como peças fluidas, que circulam em grande velocidade pela rede, é simplesmente impossível caracterizar os memes como tal em tempo real. O olhar do pesquisador se dá sempre em retrospecto, porque é assim que o conjunto ganha sentido. O que faz de um meme um meme? Simples. É a construção compartilhada de significados. Em outras palavras, os memes são uma experiência de memória social.