A sátira como estratégia de intensificação do absurdo

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15 nov
Por
Dandara Magalhães
Mestra e Doutoranda em Comunicação pela UFF.

Os memes de internet funcionam, segundo a definição de Limor Shifman (2014), como grupos de itens digitais que compartilham características em comum, tomando como base uma mídia, seja ela uma imagem, vídeo, frase ou hashtag, e geralmente são um fenômeno efêmero mas de rápida viralização em sites de redes sociais.

Por conterem muitas vezes uma linguagem carregada de sátira e humor, são frequentemente vistos como um fenômeno que não tem muito impacto social e nem grande importância para a comunicação em si. Esse raciocínio nem sempre tem fundamento, já que podemos observar que nem todos os memes fazem uso de humor ou ainda que, por causa do uso de humor eles não sejam capazes de apontar assuntos sérios dentro do contexto pertinente. Hashtags são comumente utilizadas para abordar assuntos políticos e muitas vezes conseguem trazer críticas sociais ou uma reflexão atrelada ao seu uso, mas também temos muitos memes que circulam em vídeo ou imagem que procuram fazer o mesmo.

Nesse sentido, o meme Advice Hitler ‐ que ganhou popularidade no período entre 2011 e 2012 e teve circulação internacional ‐ expressa uma crítica social a posições assumidas por grupos extremistas e conservadores, a partir da exacerbação do absurdo, tomando como ponto de partida a fala em primeira pessoa do ditador nazista Adolf Hitler, que comandou a Alemanha durante os anos de 1934 a 1945, levando o país à Segunda Guerra Mundial e tornando-se figura central do Holocausto. Advice Hitler não é o único meme a trabalhar a imagem de Hitler. Outros vários exemplos incluem as paródias do filme A Queda (Downfall), com legendas satíricas no YouTube, e outros personagens como Bedtime Hitler, Gay Hitler e Disco Hitler.

O meme Advice Hitler, porém, segue o formato consagrado por outros memes conhecidos como Advice Animals, que circula em comunidades online desde pelo menos 2006, quando já se tinha imagens de animais recortadas sobre um fundo com padrões coloridos extravagantes, acompanhados de uma legenda que chamava atenção para uma espécie de conselho politicamente incorreto.

Tradução: "A economia é uma droga? / Culpe os judeus!"

Adolf Hitler era um ex-militar que serviu durante a Primeira Guerra Mundial ao Exército do Império Alemão. Após uma tentativa de golpe fracassada, foi condenado à prisão, onde ficou por pouco mais de um ano, e quando aproveitou para escrever o livro que congrega suas principais ideias. Tendo sido perdoado pela Suprema Corte, alcançou grande popularidade nos anos seguintes a partir da propagação de suas ideias nacionalistas e extremistas, onde já era possível identificar uma ideologia que pregava a superioridade da “raça pura" alemã, e teses racistas, antissemitas e homofóbicas. Alçado ao posto de chanceler alemão em 1933, a partir do ano seguinte, acumulou funções do poder executivo e tornou-se efetivamente líder máximo da Alemanha nazista.

Tradução: "Hitler! Tu não tem cabelo loiro e olhos azuis?!"

Mas porque alguém utilizaria um dos maiores genocidas do mundo em um meme? É interessante observar que, nas imagens de Advice Hitler, os discursos que aparecem atrelados à figura do ditador se utilizam do humor como forma de crítica impregnada de sarcasmo e ironia, assumindo uma retórica em primeira pessoa que sugere que o próprio ditador poderia achar cômica uma situação em princípio absurda, ou apresenta, de forma ironicamente velada, uma série de teorias do que poderia ter acontecido na vida pessoal de Hitler para que ele se tornasse a figura que se tornou. Abusando de um humor duvidoso e uma linguagem crua, as imagens satirizam falas ou situações que envolvem o próprio Hitler, como sua origem “impura", conforme os parâmetros estabelecidos por ele mesmo. 

Assim como os demais memes que seguem o formato Advice Animal, o padrão dos memes que se utilizam da imagem de Hitler é baseado em conselhos do próprio a terceiros, seja nos dias atuais ou na sua época. Esses conteúdos, portanto, abordam principalmente assuntos como o genocídio judeu, o suicídio de Hitler, racismo, homofobia, nacionalismo, guerra e extermínio em massa, todos assuntos que estão historicamente relacionados à compreensão política do líder nazista.

Tradução: "Fui rejeitado no curso de Artes da universidade / 6 bilhões de judeus mortos"

Ao observarmos exemplos de memes da família Advice Hitler, notamos que as cores escolhidas para o fundo são sempre as mesmas: o vermelho, branco e preto, que remetem às cores do partido nazista e também do Império Alemão. A fonte, assim como na maioria dos image macros é geralmente Impact branca com outline preta, com todas as letras maiúsculas. A adoção desses padrões cromáticos e tipologia contribuem para que o meme possa ser lido como uma imagem entre outras, que obedece a um formato já clássico entre os macros.

Advice Hitler procura ressaltar, através do uso da sátira e de elementos do nonsense, o absurdo evocado por posições extremadas, como representa o regime de extrema-direita comando por Hitler. A linguagem que, em muitos momentos pode chocar, se presta a uma ambiguidade sutil, reforçando o retrato da exclusão de minorias durante um dos períodos mais difíceis da História contemporânea. A grande pergunta, no entanto, é: essa operação do humor é capaz de proporcionar alguma reflexão a respeito do Holocausto e do regime nazista?

Tradução: "Fui espancado quando era criança / Cresci, e tudo ficou bem"

Se, por um lado, memes que se utilizam dessa “estratégia de choque", podem retratar o absurdo extremista e nos fazer questionar sobre os pressupostos ideológicos do nazi-fascismo, por outro, há um perigo representado pelo que o historiador Gavriel D. Rosenfeld classifica como um processo de normalização da imagem do passado. A normalização, descreve Rosenfeld, ocorre através de uma memória comunicativa, que traduz como elementos banais situações, fenômenos ou trajetórias marcadas pela excepcionalidade. Ele chama a atenção para o fato de que é comum olharmos para o passado com certa nostalgia, destacando grandes heróis e períodos históricos ou, de outra forma, rechaçando períodos de crise, regimes autoritários, criminosos e genocidas. Entretanto, alguns padrões de interação dão vazão a uma memória comunicativa capaz de reescrever passagens do passado a partir de um novo olhar. A normalização é uma dessas operações. É, através dela, que a figura de um genocida se transforma em ícone da cultura pop, como os diversos memes que se utilizam da imagem de Hitler e do imaginário nazista.

A normalização não é sempre um processo de banalização do mal (como diria Arendt), da violência ou da discriminação. Pode-se dizer, por exemplo, que movimentos sociais de forma geral buscam alcançar um processo de normalização de algumas de suas pautas. O movimento feminista, para ficarmos apenas em um caso, propõe que denúncias de assédio e comportamento sexista não sejam exceção, e, portanto, possam ser tratadas com objetividade pela sociedade, de forma que as mulheres se sintam mais seguras para denunciar agressões e as políticas públicas que promovem igualdade entre gêneros se tornem comuns.

Assim, a normalização, afirma Rosenfeld, pode funcionar a partir de diferentes modos. A normalização orgânica ocorre quando uma mudança na carga emocional de determinadas situações é encarada de forma mais objetiva, com tranquilidade, pelos membros da sociedade. Mas há processos de normalização que não são, de todo, orgânicos. A universalização, por exemplo, é um processo promovido como estratégia para politizar ou despolitizar determinadas agendas. A reboque dele pode ser encontrado, por vezes, um processo secundário de relativização, que propõe um revisionismo histórico sobre determinadas leituras, como, por exemplo, a perspectiva de que se deve contar o outro lado da história a respeito da ditadura militar brasileira, que resulta, entre outras aberrações, no enaltecimento da figura de torturadores.

Ilustração de capa da Collier's em 17 de janeiro de 1942. fonte: https://br.pinterest.com/pin/182466222382028077/?lp=true

Advice Hitler opera reconhecidamente na fronteira entre a crítica social e a normalização. Seus memes são incutidos de uma ambiguidade irônica que simultaneamente chama a atenção para a marca da excepcionalidade e do absurdo, e superficializa e normaliza a imagem de Hitler, convertendo-a em uma alegoria de humor. Nesse sentido, o efeito da figura do ditador nazista no meme se assemelha ao dos cartuns editoriais que fazem uso da chacota e do deboche para desnaturalizar o lugar ocupado pela política e pelos políticos.

“O cartum editorial pode avançar na direção do deboche. Em casos assim, a intenção do autor não é tanto enviar uma mensagem mas, antes, provocar o humor, mesmo que para isso necessite submeter seu objeto ao ridículo. Ele se vale do humor, subordinando-o a um propósito sério e utilizando-o apenas para tornar a mensagem séria mais palatável."

A observação de Christie Davies sustenta que, mesmo nas produções anteriores ao meme de internet, artifícios como o deboche deslegitimam figuras dúbias e são capazes de deixar os assuntos mais “fáceis" para serem digeridos, porque trazem à superfície elementos de crítica atravessados pelo distanciamento objetivo proporcionado pelo humor. Como vimos, porém, a pervasividade desse tipo de recurso pode terminar por conferir o efeito contrário e banalizar essa mesma crítica. O limite entre as duas operações é absolutamente tênue.

No caso dos cartunistas, é comum a utilização de recursos visuais que são reconhecidos pelo público já à primeira vista, como, por exemplo, a utilização de personagens antropomorfizados.

No caso dos memes, os trocadilhos e o chiste linguístico nem sempre é um recurso acessível e evidente a todos, de forma que muitas vezes piadas proferidas pela internet são encaradas com máxima seriedade como se fossem efetivamente indício de verdade ‐ a ampla disseminação recente de fake news em diversos circuitos das mídias sociais durante as eleições brasileiras que o diga! Como então escapar dos efeitos da normalização sem deixar de lado a perspectiva crítica?

Não há ‐ ou pelo menos não temos ainda ‐ fórmula pronta para isso. O que não podemos perder de vista é que o humor é uma arma importante na luta pela construção de uma saída democrática. Através dele, é possível alertar para desigualdades sociais, e apontar para leituras históricas carregadas de um princípio de dever de memória. Empregando uma retórica que intensifica o absurdo para ilustrar a excepcionalidade e provocar uma reflexão junto ao público, o humor pode, sem dúvida, nos colocar em posição desconfortável. A pergunta seguinte é: afinal, do que estamos rindo?

Referências

Davies, C. Cartuns, Caricaturas e Piadas: Roteiros e Estereótipos, do livro Imprensa, humor e caricatura: A questão dos estereótipos culturais. In: Lustosa, I. (org.). Humor e imprensa, 2011.

Ricoeur, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2018.

Rosenfeld, G. D. Hi Hitler! How the Nazi past is being normalized in contemporary culture. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.

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