Dançando Fora Dilma: memes políticos e performance

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29 out
Por
Viktor Chagas
Professor e pesquisador da UFF.

Poucas vezes na história recente do Brasil o elemento da performance na cena política ficou tão em evidencia quanto na Dancinha Fora Dilma. A referida coreografia veio à tona através de um vídeo divulgado pelo jornal cearense O Povo, em 11 de agosto, dias antes da fartamente anunciada manifestação de 16, contra Dilma e o Pixuleco. Tratava-se de um ensaio para o verdadeiro espetáculo, no próprio dia 16, novamente filmado em praça pública. A repercussão foi tão grande que a peça original já passa de 2,5 milhões de visualizações, mas a grande inovação veio mesmo na sequência… Afinal, a Dancinha Fora Dilma é um meme?

A pergunta não é ingênua, pois estamos acostumados a pensar os memes como mídia, refletindo geralmente sobre seus suportes (a imagem, o áudio, o vídeo etc.), sobre seu texto (em sentido verbal e não-verbal), ou sobre outros indícios de materialidade. Raramente atentamos para o fato de que os memes podem também se configurar como performance. E, quando digo performance, não me refiro apenas à materialidade que dela resulta, qual seja, o vídeo da coreografia, mas à performance per se. Pode, porém, uma performance ser compreendida como um meme?

A performance como meme

A dimensão do espetáculo na política é velha conhecida dos cientistas sociais. O espetáculo, como sabemos, é um conceito multifacetado. A chave conceitual que nos interessa aqui é a do drama, que nos permite compreender a política como a arte de representar ‐ também entendida nas suas múltiplas acepções ‐, e naturalmente a arte de encenar. A encenação política encontra paralelo também com o que Bennett chamaria de “brincadeira política" (no original de difícil tradução, “political play“).

A brincadeira política pressupõe uma transformação, através de atividade criativa, de um episódio sério em forma recreacional. É o dispositivo da brincadeira, diz Bennett, que permite que imagens “bizarras" (palavras do autor) sejam compreendidas como dentro da rotina da campanha eleitoral. Por isso, é comum guardarmos a impressão de que, encerrada a contenda, os candidatos que ora se apresentavam como concorrentes, passam a se mancomunar em prol de seus interesses corporativos e partidários. A brincadeira permite e incentiva o exagero, o apelo emocional, a pantomima. E é aí que entra a performance.

Bennett cita, por exemplo, a já clássica imagem de um protesto contra a Guerra do Vietnã, em que manifestantes inseriam flores nos canos dos rifles de policiais que estavam ali para conter as revoltas populares. A performance, que ainda hoje segue inspirando outros grupos manifestantes, deu início ao movimento que se traduz pelo bordão “Flower Power" (por sua vez, uma referência a outros bordões de movimentos sociais, como “Black Power"). Manifestações populares são pródigas na criação de imagens, e estas imagens muitas vezes decorrem de atos performativos, isto é, na definição de Austin, ações que ganham sentido enquanto e somente enquanto se desenrolam, como o discurso. Entender a performance como meme é, portanto, dedicar atenção à sua condição de efemeridade, à sua unicidade e à sua equivocidade.

A performance é efêmera ‐ pois seu significado se esvai no tempo, no momento mesmo em que se afirma. Apesar de efêmera, ela é marcante, memorável. Mas uma performance, ao menos em essência, não possui registro material e não é replicável no tempo.

A performance é única, porque não se reproduz também no espaço. Ou, quando se reproduz, se reproduz de outra forma, a partir de sua forma remediada. Uma peça de teatro, no clichê mais exemplar, não é sempre a mesma a cada apresentação. Ao contrário. Ela é sempre outra. Como o rio de Heráclito.

A performance é equívoca, porque, apesar de única e efêmera, ou talvez justamente por isso, guarda múltiplos significados e possibilita diferentes leituras, o que reforça seu aspecto social. A performance não é senão uma construção social, porque, mesmo quando performatizada individualmente, ela carece de interlocução para produzir sentido.

Estas três condições estão presentes em todo e qualquer meme performático. Da Dancinha Fora Dilma ao Harlem Shake, das poses em photo fads ao Hallway Swimming.

A Dancinha Fora Dilma, como toda coreografia ‐ pense, p.ex., na Macarena ou no Quadradinho de 8, ou ainda, para ficarmos no registro do lúdico e do fantasioso, na fantástica Dança do Quadrado, que, entre outras proezas, tem a virtude de transformar em poesia concreta a metáfora da Quarta Parede ‐ incide ex abrupto sobre o mundo físico, na medida em que se ancora em um comportamento sociotécnico, a dança. Como espetáculo, ela rompe com a naturalidade do cotidiano e impõe uma equivocidade extravagante. O que representa?

Populando a linha tênue entre a ordem coreografada e o ridículo do exagero, a dança suscita curiosidade e instiga os ânimos. Seu potencial como “mídia-viscosa" (tradução nossa para sticky media, termo empregado pelo relatório de Jenkins et al.) é muito similar ao de outras peças publicitárias, fartamente empregadas no marketing político, como os jingles por exemplo. Mas e quando uma performance como esta é registrada e as intervenções são feitas sobre o registro e não sobre a performance? Neste caso, temos o inverso: não a performance como meme, mas o meme como performance.

O meme como performance

Se a performance é artifício político corriqueiro nos tempos modernos, é natural pensar que gerem memes. Afinal, nesse sentido, os memes são exatamente a materialidade desses atos. Ao materializarem-nos, porém, eles, os memes, convertem-se em novos atos performativos, gerando intervenções sobre intervenções.

O exemplo mais simplório é de um meme transnacional, onipresente em manifestações populares que contam com extrema repressão policial, que é normalmente identificado como Pepper Spraying Cop. Pepper Spraying Cop é um típico exploitable, que recorta a imagem de um policial que espirra spray de pimenta sobre os olhos de um manifestante, geralmente indefeso. A cena em si talvez não se constitua em ação espetacular, à medida que tragicamente banal. O seu registro fotográfico, porém, e a subsequente exploração da imagem em montagens que evidenciam o absurdo da situação, ampliam e re/des-constroem os significados originais. É o meme agindo sobre a realidade, criando discurso.

Por este raciocínio, a operação de “desvio" intrínseca à produção dos memes é ela própria performativa. Este efeito transparece ainda mais quando estamos diante de um deslocamento de sentido como na Dancinha Fora Dilma. No melhor espírito da brincadeira política, a performance que é meme deu origem a memes que são performances. O vídeo, de mais de 2,5 milhões de acessos, é um dos virais políticos recentes que mais reverberaram nos últimos meses. Seu sentido, porém, foi completamente reconfigurado com o lançamento de uma série de intervenções sobre o registro audiovisual original, com temas musicais que foram sobrepostos à coreografia, subvertendo-a e parodiando-a. A intervenção produz o efeito oposto ao dos memes conhecidos como lipdubs ‐ isto é, vídeos que um determinado protagonista (geralmente filmado em primeira pessoa, como em uma selfie) dubla uma música famosa, por vezes, performatizando sua coreografia. A Dancinha Fora Dilma passa a ser, portanto, não apenas o registro videográfico de uma forma inusitada e performática de protesto, mas o conjunto de intervenções geradas sobre este registro, que, por sua vez, constitui uma nova performance.

Assistir aos “episódios" da série Dancinha Fora Dilma –  Tumblr Dançando Fora Dilma coletou e produziu uma série dessas montagens – significa, em grande medida, saber reconhecer estas camadas semântico-contextuais, onde a dancinha em si deixa de ser fim para ser meio.

Referências

BENNET, W. L. When politics becomes play. 1979.

GOMES, Wilson. Transformações da política na era da comunicação de massa. 2004.

SANTOS, J.G.B. & CHAGAS, V. A televisão será memetizada: engajamento e ação coletiva nos memes dos debates eleitorais em 2014. 2018.

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