É verdade esse bilete: memes e a disputa pela verdade

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15 nov
Por
Rangel Ramiro Ramos
Mestre em Comunicação pela UFF. Doutorando em Ciência Política pela UFPR.

A fim de ficar em casa e assistir sua série preferida, Gabriel Lucca, de 5 anos, escreveu um bilhete passando-se por sua professora e o entregou à sua mãe. Nele, o recado era de que não haveria aula no dia seguinte, e, para finalizar sua “arte", Gabriel pós-escreveu: “é verdade esse bilete". A mãe de Gabriel não se conteve e publicou, no dia 21 de agosto, uma foto do bilhete no Facebook.

Alguns dias depois, a frase “é verdade esse bilete", já havia se tornado um bordão nacional. Artistas, empresas e internautas das mais variadas regiões do país começaram a escrever absurdidades assinando de brincadeira: “é verdade esse bilete". O meme “é verdade esse bilete" ‐ que, no universo memeal, pode ser entendido como um bordão ou uma catchphrase ‐ popularizou-se por sua ironia, figura de linguagem de oposição, que segundo Chagas (2016) é característica dos memes de discussão pública.

Mas, curiosamente, “é verdade esse bilete" é um meme que surge no ano das eleições presidenciais. Período em que lidar com a verdade não foi um trabalho fácil para ninguém, nem para veículos de comunicação e jornalistas, nem para partidos e políticos, tampouco para cientistas políticos e sociais. A atmosfera de desconfiança instaurada no Brasil, fruto de uma crise proporcionada, principalmente, pelas pós-verdades e fake news que circularam no universo da política antes e durante a corrida eleitoral de 2018, fez com que, a cada notícia envolvendo a reputação de algum político, surgisse também uma polêmica carregada de questionamentos do tipo: “não foi isso que ele quis dizer", “o jornal pegou a frase fora de contexto", “isso é fake news" etc.

Claire Wardle (2017) categoriza o fenômeno das fake-news apresentando o seguinte quadro:

Sátira ou paródia Conteúdo enganador Conteúdo impostor Conteúdo fabricado Conexão falsa Contexto falso Contexto manipulado
Sem intenção de causar um mal, mas com potencial para enganar Uso enganoso da informação contra um assunto ou indivíduo Quando fontes genuínas são usadas para representar notícias falsas O novo conteúdo é 100% falso, feito para desinformar e causar danos Quando manchetes, imagens e legendas se apresentam de forma diferente ao conteúdo posto Quando o conteúdo genuíno é compartilhado com um contexto falso Quando a informação genuína ou imagem é manipulada para enganar

Tradução livre.

Wardle (2017), também problematiza as motivações que levam as pessoas a criar este tipo de conteúdo. Para a autora, são oito: jornalismo pobre, paródia, provocação, paixão, partidarismo, lucro, influência política, e propaganda. O quadro a seguir, em inglês no original, mostra a correlação entre os tipos de informação com as motivações dos produtores de tais conteúdos:

Contudo, a característica mais intrigante da desinformação é a sua capacidade de influenciar o debate público sobre temas relevantes, mobilizando facilmente a opinião pública e, dessa forma, sendo capaz de influenciar eleições presidenciais ou causar polêmicas internacionais. Um exemplo disso foram as eleições estadunidenses que envolveram a compra, por grupos políticos russos, de espaços publicitários no Google, Facebook e Twitter para disseminar informações falsas e notícias difamatórias e caluniosas a respeito da então candidata Hillary Clinton.

O episódio estadunidense fez com que o mundo todo despertasse para o fenômeno das fake news, principalmente em corridas eleitorais, em que “vencer" a disputa pela verdade torna-se crucial para o bom desempenho do candidato. Na França, foram criados diversos comitês de monitoramento e plataformas de checagens de notícias. Na Alemanha, as medidas tornaram-se propostas de lei que impõem multas às empresas de redes sociais que não adotarem ações preventivas contra a desinformação. No Brasil, durante a última corrida eleitoral, surgiram denúncias, boatos e rumores sobre o financiamento de fake news para campanha do candidato Jair Messias Bolsonaro, porém, o processo anda à passos de formiga, tramitando no Tribunal Superior Eleitoral.

As medidas adotadas para combater a desinformação em período eleitoral só revelam o quanto as narrativas podem potencializar o conflito. Podemos tomar a narrativa jornalística como exemplo: a maioria das notícias são conotações dramáticas imediatas e negativas, mesmo preocupada com os critérios/valores da notícia, ainda é mais bem definida como escândalos, golpes, crimes, rompimentos e quaisquer anormalidades. Sabe-se bem que a palavra é arma do político e que a retórica é seu campo de batalha. Por isso, a reputação política, que precisa ser forte e importante, é ao mesmo tempo frágil e volátil, já que não há controle sobre as narrativas que se criam em torno dos políticos.

A partir dessas indagações sobre a verdade no cenário político, surge a hipótese de que tanto a desinformação quanto a brincadeira e o humor potencializam a construção de personagens, conflitos, combates, heróis, vilões, mocinhos, bandidos, e estabelecem punições e recompensas para tais. É por isso que o meme “é verdade este bilete" nos leva à uma reflexão sobre como a verdade pode ganhar contornos e nuances singulares nas relações, especialmente, em tempos de redes sociais online.

O meme “é verdade este bilete" é alocado numa concepção de conversação cotidiana, ao que Chagas (2017, p. 104) denomina como uma “noção ampliada de meme", em que comentários de internautas comuns são reapropriados e compartilhados por outros usuários. Segundo o autor, é comum que a conversação ganhe mais velocidade e intensidade se houver uma disputa de sentidos polarizada. Para Mansbridge (2009), as pessoas passam a entender melhor o que querem e precisam à medida que a conversação cotidiana se desenvolve. E, de acordo com Bennett (1979), a brincadeira política compõe um ritual de aprendizagem coletiva.

Portanto, partindo dessa noção ampliada de memes, podemos encontrar paralelos entre os memes de internet e as fábulas, contos e lendas urbanas presentes desde muito tempo na cultura popular. O discurso literário sempre teve de lidar com a questão da verdade, equilibrando-se entre o verídico e o fabulativo. Com isso, quero dizer que os memes ampliados podem surgir tanto para fabular sobre a verdade, quanto para promover a desinformação.

A fim de observar a questão da verdade e da desinformação no contexto atual e assim perceber como os memes ampliados se inscrevem no social, gostaria de propor uma observação dos fluxos e movimentos dos atores sociais, através da perspectiva teórica dos estudos das controvérsias apresentado, principalmente, por Bruno Latour em sua teoria do Ator-Rede (TAR).

Uma das primeiras reflexões que os estudos das controvérsias trazem é a de que um assunto ou tema polêmico não tem, apenas, dois lados contrapostos, ou dois polos extremados, mas, sim, vários lados, com diferentes atores, em muitos fluxos de relação, agindo em grupos distintos e singulares. Para Latour (2008, p. 42), “a tarefa de definir e ordenar o social deve ser deixada para os próprios atores, e não para o analista". Por isso, alcançar a ordem para a TAR é empenhar-se em traçar as relações presentes nas disputas em vez de tentar resolver as controvérsias. Na perspectiva da TAR, portanto, é mais interessante rastrear relacionamentos, registrando links entre quadros instáveis e variáveis, do que forçar a manutenção de uma estrutura estável.
Neste vídeo Latour explica como iniciar a observação de uma controvérsia:

Latour (2008, p. 43) argumenta ainda que “a TAR sustenta que encontremos uma maneira muito mais científica de construir o mundo social se nos abstemos de interromper o fluxo de controvérsias". Por conseguinte, entendo que analisar controvérsias utilizando a TAR é cartografar narrativas de atores variados sobre um assunto não resolvido. Logo, dizer que existe uma disputa pela verdade é inferir sobre o social sob as bases da TAR, compreendendo assim que as controvérsias apontam para as várias versões dos fatos, dos atores e dos actantes humanos e não humanos.

Para exemplificar e trazer o assunto para o universo atual da política, podemos usar o caso da campanha de Bolsonaro, que utilizou um texto bíblico como seu mote político: “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" (João 8:32). Porém, no encalço de sua campanha, além de uma denúncia de caixa dois por parte do candidato, surgiram também indícios da disseminação de notícias falsas pelo WhatsApp, patrocinadas por Luciano Hang (proprietário da Havan) e alguns outros empresários que contrataram empresas com servidores fora do país para espalhar fake news sobre partido e candidato adversários no segundo turno.

Ao utilizar o texto bíblico como slogan, Bolsonaro, automaticamente assume o posicionamento cristão, na categoria mais fundamentalista, criando sobre si uma aura sacra, carregada pelas pautas conservadoras sobre temas morais. Dessa forma, comunica aos cristãos brasileiros, principalmente aos evangélicos neopentecostais, segmento que mais apoiou o candidato, que ele será contra esses temas.

Como outras religiões, o cristianismo é ancorado por um conjunto de dogmas e doutrinas que constituem suas bases elementares. Um dos preceitos mais ensinados pela teologia cristã é a “inerrância da escritura". Tanto que uma das cinco solas da reforma protestante proposta por Lutero, documento que rege o doutrinamento evangélico atual, é a sola scriptura. Para os cristãos, a verdade apresentada pelo texto bíblico é única e inquestionável, independente da interpretação que recebe, pois está canonizada em seu texto sagrado “inerrante".

Quando uma declaração não pode ser questionada, Latour a chama de caixa-preta. Para ele, como na alegoria da Caixa de Pandora, em que se lê: “Perigo. Não Abra", o questionamento quanto a apropriação do dogma religioso adotado como verdade caracteriza uma inobservância à advertência. Abrir a caixa-preta implica em compreender mais a fundo as teias de conflito e negociação sobre as quais opera uma dada controvérsia.

A verdade sempre foi um conceito perseguido pela filosofia. A “parresía", por exemplo, conceito grego resgatado por Foucault (2010) para tratar do “falar a verdade" na concepção do governo de si e governo dos outros é tratada como uma virtude que algumas pessoas têm e outras não. Para Foucault (2010, p. 42), parresía “é uma técnica, é um procedimento: há pessoas que sabem se servir da parresía e outras que não sabem se servir da parresía".

Acredito que o meme é capaz de expor verdades que venham a desestabilizar discursos enrijecidos. Contudo, ele ainda é uma linguagem e, sendo assim, há pessoas que sabem usar e outras não, como na parresía. Para mim, o meme “é verdade esse bilete" é também uma provocação em relação ao discurso religioso conservador e enrijecido, que se posiciona como guardião da verdade única. Quando a imagem de Bolsonaro é justaposta ao post-scriptum de Gabriel Lucca, a ambiguidade criada em torno da retórica bolsonarista se torna provocativamente evidente.

Referências

BENNETT, W. L. When politics becomes play. Political Behavior, v. 1, n. 4, 1979.

CHAGAS, Viktor. “Não tenho nada a ver com isso”: cultura política, humor e inter- textualidade nos memes das eleições 2014. In: CERVI, Emerson U.; MASSUCHIN, Michele G.; CARVALHO, Fernanda C. de (Org.). Internet e eleições no Brasil. Curitiba: CPOP, 2016

CHAGAS, Viktor. Sobre vaias: considerações acerca do jogo político (political game) e da brincadeira política (political play). In: Memória das Olímpiadas no Brasil [recurso eletrônico]. Organizadores: Lia Calabre… [et al.]. – Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2017.

CORRÊA, D. Do problema do social ao social como problema: elementos para uma leitura da sociologia pragmática francesa. In: Revista de Ciências Sociais, n. 40, abril/2014, p. 35-62.

FOUCAULT, Michel. O Governo de si e dos outros. Trad: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Trad: Ivone C. Benedetti – São Paulo: Ed. UNESP, 2000.

LATOUR, Bruno. Reesamblar lo social: una introducción a la teoría del actor-rede. 1ª ed. Buenos Aires: Manantial, 2008.

MANSBRIDGE, J. A conversação cotidiana no sistema deliberativo. In: MARQUES, A. C. S. A deliberação pública. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

WARDLE, Claire. Fake news. It’s complicated. First Draft News. Harvard Kennedy School. Shorenstein Center on media, politics and public policy. Disponível em:
[https://firstdraftnews.com/fake-news-complicated/]. Acesso em 30 de set. 2018.

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