Por que estudar memes? Há muitas dúvidas, lançadas por estudiosos de diferentes áreas, sobre a legitimidade do objeto. Os pesquisadores que se dedicam à investigação sistemática sobre a produção e circulação desses conteúdos são confrontados diariamente com apontamentos céticos como esse, que raramente ultrapassam o véu de superficialidade que encobre as imagens de gatinhos fofos que pululam pela rede. Particularmente no ambiente da política, a crítica é ainda mais rigorosa, já que não é incomum uma visão reducionista, como atesta Mansbridge, da política à esfera do poder e ao processo de tomada de decisão. Afinal, apregoam os críticos, para que servem os memes se não produzem efeito no ambiente político real?
Há pouco mais de um mês, uma ação surgida espontaneamente entre internautas contrários ao Impeachment da presidente Dilma Rousseff tomou de assalto a página do PMDB no Facebook, o chamado “vomitaço”. Entre os dias 10, 11 e 12 de maio, nos momentos que antecederam a votação em plenário no Senado Federal do afastamento da presidente, milhares de internautas se manifestaram na rede, publicando como comentários aos posts da fanpage do partido do vice-presidente Michel Temer, um emotion em forma de sticker estampando sua reação de nojo diante das últimas publicações dos administradores da página. Os stickers e emotions são símbolos icônicos empregados em chats do Facebook, similares aos emoticons e aos emojis. Popularmente traduzidos no Brasil como “figurinhas”, eles apresentam imagens estilizadas utilizadas como reações e comentários sociais no site de rede social.
Desde que as ações tomaram corpo, ouve-se críticas quanto ao seu significado. Em primeiro lugar, a fala mais corriqueira relativiza o lugar do “vomitaço” como ação política, uma vez que não produziria efeitos reais e não circularia informação política, constituindo-se basicamente por uma massa amorfa de comentários em forma de emojis. O “vomitaço”, nesse sentido, seria a expressão perfeita do assim chamado slack-tivism, comumente traduzido no Brasil como “ativismo de sofá”. Entretanto, e aqui entra o caráter provocador do movimento, uma ação como o “vomitaço” não produz menos efeitos do que um protesto físico no espaço urbano. A rigor, a ação se baseia em uma velha conhecida tática de guerrilha em comunidades virtuais, o flooding, isto é, a repetição ad naseaum de uma determinada peça de texto (ou imagem) com o propósito de irritar e tomar para si todo o espaço da discussão, interrompendo ou incapacitando a ação de outros interlocutores. Está aí o efeito real de campanhas ativistas como o “vomitaço”. As principais perdas impostas aos alvos, porém, não se resumem aos efeitos práticos, por si só já bastante desagradáveis. O “vomitaço” impõe consideráveis prejuízos às equipes que administram as páginas atacadas no Facebook, mas, acima de tudo, desestabiliza a imagem pública de seus alvos, na medida em que os expõe à crítica, ao ridículo, e fomenta a reflexão de outros internautas, em princípio alheios ao noticiário, sobre o posicionamento político dessas figuras. Sem tirar nem por, é rigorosamente aquilo a que se pretende uma manifestação política como usualmente se dá em espaços públicos. Como espetáculo midiático, é também muito semelhante, embora falemos neste caso eminentemente de um ciber-ataque, à sua contrapartida conservadora no espectro político atual, os panelaços. Caracterizar o “vomitaço” como uma ação política de segunda ordem ou como uma simples brincadeira sem maiores consequências é não atentar a estes detalhes.
Outra crítica procura situar o “vomitaço” como não apenas um ativismo “preguiçoso”, mas também letárgico ou alienado. Por essa visão, por mais que produza efeitos práticos, o movimento não contribui para o debate público de qualidade, reproduzindo apenas uma única peça de informação, como se os manifestantes fossem ali ovelhas seguindo seu pastoreio. (Ora, argumento semelhante, sobre o grau de esclarecimento dos manifestantes, não poderia ser adotado também no contexto de um protesto físico?) Supostamente, no “vomitaço”, não haveria discussão efetiva, não haveria crítica, não haveria sequer humor. Como caracterizá-lo, portanto, como um meme de internet? Para lidar com estas questões, precisamos desatrelar a ideia de que os memes são apenas imagens de gatinhos fofos que circulam pela internet. Autora que adquiriu grande notoriedade recentemente pela sua pesquisa sobre a cultura popular de internet, Limor Shifman define os memes a partir de uma tipologia que reconhece inicialmente: (a) memes persuasivos, (b) memes de ação popular e (c) memes de discussão pública. Os memes persuasivos se assemelham a peças publicitárias, incorporam uma retórica de convencimento e operam mais como virais do que como memes propriamente. Já os memes de discussão pública são aqueles a que estamos mais habituados, trazem piadas de um humor ácido e muitas referências intertextuais. A última categoria, dos memes de ação popular, é caracterizada por um comportamento coletivo reiterado: pessoas que tiram fotos na mesma pose, ou que replicam as ações de outras (como jogar um balde de gelo na cabeça como forma de desafio). Memes deste gênero são percebidos apenas em seu conjunto como uma dinâmica de ação empreendida coletivamente. O “vomitaço” naturalmente se enquadra neste tipo. Contudo, isso não significa que não tenha havido variantes do meme que perfazem outras características. Durante o auge das ações é muito comum acompanhar que alguns internautas parodiam a própria militância, utilizando imagens e animações que flertam com o humor crítico. Estas apropriações dão a exata dimensão do quanto o “vomitaço” pode ser lido como um autêntico meme, nos moldes dos memes de ação popular de que fala Shifman.
Em oportunidades anteriores (cf. Chagas et al.), buscamos conciliar a taxonomia de Shifman com a de Bennett & Segerberg e o modelo teórico de Bimber et al., no sentido de entender os memes de ação popular como expressões de ações coletivas tradicionais ou de ações conectivas. Na taxonomia que vimos desenvolvendo para estudo e avaliação desses fenômenos, com base nesses autores, propomos a existência de memes de ação popular que se desenvolvem a partir de (a) ações coletivas operando através de redes curadas por organizações, de (b) ações conectivas híbridas operando através de redes catalisadas por organizações e movimentos sociais, de (c) ações conectivas stricto sensu, operando a partir de redes auto-organizadas e auto-gestadas, e finalmente de (d) ações conectivas de engajamento relativo, cujo principal traço é a dificuldade em se identificar efetivo engajamento político na ação empreendida. O “vomitaço” dos dias 10, 11 e 12 de maio preenche todos os requisitos de uma ação conectiva, tal como Bennett & Segerberg a descrevem. Suas expressões ulteriores, todavia, caracterizadas pelas campanhas orientadas que tiveram espaço a partir da fanpage do movimento no Facebook trataram de institucionalizar a ação, tornando-a mais próxima de uma ação conectiva híbrida ou mesmo de uma ação coletiva mais tradicional.
Dessa forma, observamos que, segundo o modelo teórico que temos desenvolvido, em um espectro que dispõe de modo linear os gêneros de memes com que temos trabalhado, à medida em que nos aproximamos do estágio dos memes de discussão pública, mais incorporamos o elemento do humor às peças informacionais que circulam pela rede. Em sentido diametralmente oposto, à medida em que nos aproximamos dos memes persuasivos, mais se institucionaliza a ação e a dinâmica de engajamento político nela empreendida.
De volta ao primeiro “vomitaço”, levado a efeito entre 10 e 12 de maio, tivemos cerca de 580 mil comentários em um intervalo de pouco mais de 48 horas. Desses, procuramos isolar os “vômitos” como comentários sem texto, apenas com stickers do Facebook, chegando a um total de 540 mil manifestações em protesto ao PMDB, com a ressalva de que os restantes 40 mil comentários com algum texto eram também, em sua maioria, contrários ao Impeachment, com brados de “Fora Temer” e “Golpistas não passarão”.
O volume de comentários expressos no grafo apresentado no princípio deste texto é indício claro de que a ação paralisa os esforços de moderação, tornando difícil até mesmo bloquear os usuários que integram o enxame ou excluir seus comentários. O post mais “vomitado” na fanpage do PMDB, por exemplo, marcado com as hashtags #UnidosComBrasil, #SomosTemer, #OBrasilQuerMudar e #OBrasilVaiMudar, recebeu sozinho mais de 115 mil “vômitos". O internauta que liderou o movimento “vomitou” 768 vezes em diferentes posts. Mas ele não é, definitivamente, caso isolado. Sete outros internautas “vomitaram” pelo menos 300 vezes. E exatos 161 internautas “vomitaram” mais de 100 vezes nos mesmos 29 posts. Na imagem acima, procuramos mapear esta rede, identificando em amarelo os posts da fanpage do PMDB publicados entre 10 e 12 de maio; em verde, os comentários a esses posts; e, em vermelho, os internautas com mais de 100 manifestações. Devemos lembrar, contudo, que a fronteira é absolutamente convencionada, e este é o principal aspecto que distingue uma ação conectiva (cf. Bennett & Segerberg) desenvolvida espontaneamente, de uma ação coletiva, em que um grupo de lideranças conduz e orienta o movimento, estruturado de modo hierárquico. Não há separação clara entre os iniciadores do movimento e seus replicadores. A leitura da curva de potência também não permite identificar a atuação evidente de robôs na ação, já que o comportamento reiterado dos atores é suavemente escalonado: dos manifestantes com atuação mais intensa aos com atuação mais modesta.
Por volta do dia 11, o “Vomitaço” ganhou uma página própria no Facebook, que, atualmente, conta com quase 150 mil seguidores, além de expressões em outras mídias sociais, como o Twitter. O alcance semanal da fanpage chega a mais de 4,5 milhões de usuários. Reconhecidamente, trata-se de um processo de institucionalização por que atravessa o movimento, tornando-se cada vez mais uma dinâmica de ação coletiva tradicional, com direcionamento explícito e coordenado. Resta saber quais os efeitos deste processo em uma ação surgida espontaneamente na rede. Até aqui, os “vomitaços” têm se caracterizado por uma dinâmica subversiva, mas o que será do movimento quando ele se tornar mainstream? Solucionar esta questão talvez seja mais difícil e menos produtivo do que encontrar resposta para a pergunta com que iniciamos a presente reflexão. Afinal, por que estudar memes? Simples. Para entendermos como a interface entre cultura e política tem se reconfigurado e se ressignificado diante da popularização da internet. “Vomitar” agora é algo que nos confere imenso prazer.