Nunca antes na história deste país se viu tantos avatares coloridos na timeline das principais redes sociais online adotadas pelos brasileiros. Sim, é verdade, os avatares coloridos não são exclusividade nossa. Mas ‐ e aí vai só um pequeno spoiler sobre o tema desta breve reflexão ‐ se vamos tratar esses arco-íris como um meme, é aqui, na terra verdeamarela, que o seu caráter memético ganha mais sentido. As perguntas sobre as quais devemos nos debruçar são: o fenômeno dos avatares coloridos é um meme? Este meme é importante, do ponto de vista político? Ou é só uma moda passageira? Por que ele se tornou uma tendência agora? E como é possível pesquisá-la?
Uma contextualização: no último dia 26 de junho de 2015, a Suprema Corte Americana garantiu respaldo a uma ação coletiva que tramitava na Justiça, conhecida como Caso Obergefell vs. Hodges, em que um ativista dos direitos LGBTT pleiteava garantia de direito constitucional ao casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos. A decisão, por ser tomada como jurisprudência para casos semelhantes, foi considerada uma vitória do Movimento LGBTT e ganhou as manchetes de diversos veículos da Grande Mídia em todo o mundo. Nas mídias sociais, a repercussão se converteu em ação popular especialmente quando o Facebook disponibilizou um aplicativo que sobrepunha às imagens de avatares dos usuários um padrão de degradê com as cores do arco-íris. O aplicativo, chamado CelebratePride, foi desenvolvido por dois estagiários de nome não divulgado, em um hackaton do próprio Facebook, espécie de maratona de programadores, e rapidamente tornado público. E, então, as timelines de praticamente todos os usuários da rede social online estavam tomadas por um colorido reluzente.
Os brasileiros já vimos usos semelhantes de aplicativos para o Facebook, sobretudo nas últimas eleições presidenciais, quando avatares com mensagens de campanha de Dilma Rousseff ou de Aécio Neves pululavam com igual fervor no ambiente online. A militância, então, se intensificou, e o clima de Fla-Flu tornou-se perceptível, mesmo aos mais desavisados.
Como software, CelebratePride, portanto, não é uma solução inovadora. Tampouco o sistema traz novas implementações para o panorama interacional da web. A cientista política americana, Jennifer Stromer-Galley, por exemplo, já cantava esta bola há alguns anos. Há um modo simples e um modo complexo de interagir com o cidadão comum através da internet. O complexo consiste em abrir diálogo franco, efetivo e produtivo, com o cidadão. O que exige, naturalmente, recursos, humanos e financeiros, e uma articulação política consistente, que evite uma eventual perda de controle da candidatura (ou dos discursos que circulam em torno dela), em meio às críticas que fatalmente choverão da militância adversária. Em vista disso, as candidaturas majoritárias ou com alguma pretensão de abrangência têm optado, em vez desta, por uma estratégia opaca, que abre pequenos flancos para a interação, mas evita sinalizar disposição para o diálogo aberto. Trata-se de uma interação limitada a uma via lúdica ou informacional, em que o cidadão tem contato com a candidatura, encontra material a respeito dela, mas nem sempre é convidado a compor o círculo decisório ou da discussão programática. No máximo, ele é instado a tomar parte de algumas ações da militância.
Trocar o avatar é, assim, uma via de interação de mão única no cenário político-eleitoral. Trata-se do que Stromer-Galley chamaria, na tradução de Aggio, de uma “interação mediática". Não uma interação humana mediada por computador, mas meramente uma interação que se limita a baixar um padrão imagético e aplicar sobre o próprio avatar. Uma só via. Ou sim ou não. Ou você faz isso ou não faz. Não há possibilidade de meio termo. É a única interação possível. Empreendê-la significa demonstrar apoio público a uma causa. E, mesmo que saibamos que há um espectro variado além de assumir ou não assumir a cauxa X, Y ou Z, embarcamos nesta interação binária porque reconhecemos a importância de demonstrar este apoio ‐ por mais que o apoio em si não complexifique a questão.
Há pessoas, é verdade, que não mudaram seu avatar. Mas isso não significa, necessariamente, que aquelas que não o fizeram, não apoiam a causa. Há pessoas que não mudaram porque não gostam do colorido. Há pessoas que não mudaram porque não acessaram as mídias sociais a tempo. Há pessoas que não mudaram porque não sabem mudar. Há pessoas que não mudaram por “N" outras mais razões, inclusive, aquelas que, alegadamente, preferem não aderir a “modinhas". Estas, investigaremos com mais parcimônia o seu argumento. Do mesmo modo, há pessoas que mudaram também por diferentes motivações pessoais ou sociais. Mas, no fim, vale se pensar a respeito do aplicativo como meio de expressão e comunicação política. Como é evidente, ele comunica, mas também restringe. Ele transforma em um jogo de “sim" ou “não" aquilo que concerne a um espectro de possibilidades quase tão diverso quanto as cores do arco-íris. Limitar a ação política aos efeitos do meio é destituir de sentido uma gama de outros posicionamentos (políticos ou não), que inspiram estes comportamentos. E, em tempos de polarizações e radicalismos, é importante refletirmos sobre a maneira como temos nos apropriado dos meios para fazer política, o modo como a conversação civil na internet tem auxiliado a constituição de uma opinião pública (ou ao menos uma impressão de opinião pública) em que, por mais legítima e bem-vinda que seja a causa, o binarismo obnubila qualquer nuance.
Ademais, no Brasil, alguns grupos criticaram a “onda" norte-americana, investindo em uma argumentação que exaltava o potencial colonialismo, dito por alguns “complexo de vira-latas", ainda mais se visto à luz da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de maio de 2013, que obrigava os cartórios do país a celebrarem casamentos e uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, encerrando uma questão que se desdobrava desde 2011, após o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) do casamento como analogia à união estável homoafetiva. Ora, se tivemos decisão semelhante antes e não celebramos, por que haveríamos de celebrar agora? A resposta mais propalada foi de que a decisão da Suprema Corte Americana tinha peso evidente, por se tratar de uma grande potência mundial, e que traria uma repercussão ainda maior aos movimentos de direitos humanos. Mas isso não responde, senão parcialmente, a questão. A melhor resposta talvez tenha sido dada por Batman Impaciente, um impiedoso tapa com luva de pelica nos críticos de plantão.
Não se trata, afinal, de simples comportamento viral. Uma “modinha", como afirmou-se. Estamos diante, pode-se dizer, de um autêntico meme. Não fosse isso, todas as referências seriam eminentemente voltadas ao episódio norte-americano. E, aqui, o que mais se viu foram referências brasileiras ao caso. A começar por imagens de Malafaia, Bolsonaro e Marco Feliciano, cujos exemplos são variados e profícuos.
Malafaia, diga-se de passagem, havia se traduzido em personagem de memes desde o episódio da semana anterior, quando o jornalista Ricardo Boechat lhe mandou procurar uma “rola". A despeito das problematizações que a fala do âncora da Rede Bandeirantes sofreu na ocasião, a expressão rapidamente se tornou meme. Dias depois, a memesfera estadunidense também foi pródiga em criar referências sobre a imagem do mesmo Malafaia em debate com Toni Reis, presidente da Associação Brasileira LGBT.
Os memes sobre Malafaia colocam em pauta a disputa no contexto brasileiro, entre movimentos evangélicos conservadores e o Movimento LGBTT, uma disputa que é, essencialmente, distinta daquela travada em solo americano. As razões dos usuários brasileiros para adotarem o arco-íris de CelebratePride eram bem outras, e o uso empreendido por internautas neste contexto ressignificou a proposta original do aplicativo. Não se demonstrou apoio à decisão da Suprema Corte Americana, mas apoio à causa, diante dos revezes sofridos com a afirmação política de uma bancada legislativa conservadora nos últimos meses. No Brasil, mais do que em outros países, o efeito de CelebratePride foi o de um meme político. Tanto é que diferentes peças que circularam pelas mídias sociais estimulavam comparações entre os políticos que adotaram o padrão colorido sobreposto ao avatar e os que não o fizeram.
Note-se, também, que o meme originado pelo aplicativo CelebratePride não se resume às peças criadas a partir da sobreposição de imagens com o degradê de arco-íris. O comportamento, em si, é por excelência um comportamento memético. Assemelha-se a isto memes como photofads, em que diferentes pessoas assumem uma mesma posição em suas fotografias, como forma de inspirar ações populares ou até flash mobs. Na cultura popular de internet norte-americana, têm se tornado cada vez mais comuns os photofads, como Tebowing, Shoes on Head, Batmanning. Em geral, estas “manias" consistem em fotografias de pessoas em poses esdrúxulas, que se tornam uma espécie de desafio viral.
Esta compreensão nos lega uma abordagem sobre o universo dos memes que os enxerga como fruto de manifestações coletivas. Memes como este não são necessariamente divertidos e bem-humorados. São, antes de mais nada, ações populares politicamente orientadas. E, na política, como sabemos, muito embora a ambiguidade seja uma estratégia favorável em cenários catch-all, quando o meio nos impõe uma decisão binária, titubear ou não tomar posição é muitas vezes resumido como tomar posição contrária. A “onda" é, nesse sentido, muito menos “onda" em razão da assunção do ponto de vista colonialista, e muito mais em função da racionalização sobre as constrições do meio (social). O meme não é somente fruto da dialética entre imitação e inovação, que já era objeto de investigação de Tarde desde muito antes da noção de meme vir a existir, ou da imitação cooperativa cujo paralelo com comunidades de formigas e abelhas alguns teóricos da cibercultura como Surowiecki e Johnson insistem em traçar ‐ à luz da crítica de outros pesquisadores não menos entusiastas das novas tecnologias, como Lévy ‐, mas de um processo que demanda, na pior das hipóteses, cálculo político e social. As dificuldades em se traçar as variáveis deste cálculo, aquelas que determinam as motivações do indivíduo em adotar tal ou qual comportamento, não podem servir de desculpa para o argumento que encerra todo este processo na pura bestialização do sujeito. Política, afinal de contas, não é apenas aquela que se desenrola a olhos vistos ‐ ok! nem sempre tão a olhos vistos assim! ‐ no ambiente institucional da tomada de decisão. Política é também um acumulado de relações simbólicas, sobre as quais o indivíduo racionaliza, ainda que esta racionalização se dê na base dos afetos e das sensações.
Pesquisar esta política, a que se desenvolve no substrato cultural das nossas relações sociais, é tarefa das mais complicadas. Entendê-la a partir dos memes, é olhar para os elementos que lhe conferem alguma materialidade. A materialidade possível para uma observação sistemática, própria da pesquisa social. Dizer que essas “modas" não levam a nada é enviesar o olhar pelo curto prazo. Um olhar que não combina com a cultura política dos memes de internet.