Algoritmos, memes e cidadania: um método de pedagogia crítica

  • Home
  • artigos
  • Algoritmos, memes e cidadania: um método de pedagogia crítica
20 dez

Por
Christoffer Guldberg
King's College, Londres.
 

Este artigo elabora um método de ensino e ativismo ancorado nos métodos freirianos e baseado largamente na experiência dos alunos, com o objetivo principal de promover o pensamento crítico contextualizando, materializando e tematizando a realidade brasileira a partir de sua trajetória histórica colonizada e mistificada, oportunizando assim uma reflexão consciente, capaz de romper com o determinismo social que influencia políticas públicas como a “pacificação" e a “guerra às drogas", além da naturalização da hierarquia e das desigualdades sociais, comumente representadas em discursos online, que alcançam grande visibilidade em função dos algoritmos que aprofundam o racismo e outras formas de dominação colonial.

O método que proponho é baseado, primeiramente em uma análise de discurso, tomada como ato de cidadania. Venho desenvolvendo este tipo de prática desde minha tese de doutoramento, em que utilizei como fontes e insumo da experiência o discurso oficial sobre as UPPs e os memes que foram produzidos no âmbito da campanha “Cadê Amarildo?".

O discurso de pacificação das favelas, notadamente a partir da experiência iniciada em 2008 no Rio de Janeiro, é marcado por um determinismo social que projeta os moradores das comunidades como objetos de salvação humanitária. Trata-se de uma política antidialógica, em que serviços básicos como educação servem um projeto predefinido pelas preocupações das elites cariocas e das forças de segurança, qual seja, o de tornar os moradores cidadãos “produtivos", para um capitalismo tardio, no papel de pequenos empreendedores e trabalhadores precarizados, pretensamente salvando-os do crime e do tráfico, que representaria, segundo esta visão, a única alternativa para esta população carente de oportunidades. Tanto no discurso como na prática existe então uma fetichização negativa da cultura e do espaço da favela, tidos como responsáveis pelo crime e pela pobreza, ao invés de uma compreensão histórica, contextual e relacional da formação das favelas e sua relação com o resto da cidade. Este discurso legitima uma invasão cultural (Freire, 1981), em que a “educação formal" se propõe a transformar cultura e valores, substituindo-as por ideais muitas vezes autoritários, militaristas e misóginos, tendo como alvos tanto o consumo de drogas ilícitas e licitas como outras práticas sociais e culturais, a exemplo do baile funk, substituído em alguns relatos por bailes de debutantes típicos de uma classe média burguesa (Mattar, Chequer e Dias, 2010). Esta invasão acaba por impor um controle das minúcias da vida, inclusive a vida privada, segundo uma visão moralista de autocontrole e disciplina, orientando moradores a dormir em certos horários, e interferindo em suas vidas cotidianas com recomendações para se fazer exercício físico e beber bastante água (Carvalho, 2012). Tudo isso, se dá segundo uma visão da liberdade como perigosa, tanto que a ação politica fora dos moldes usualmente concebidos pelas forças de segurança, é vista como ameaça, e seus perpetradores, como no caso da campanha “Amarildo" são tratados como “haters" (Guldberg, 2022).

Por sua vez, os memes, por sua natureza coletiva, aberta e de devir, rompem com esta individualização e este determinismo. De maneira às vezes trágica, indignada ou mesmo lúdica (Guldberg, 2024), eles rompem com os mitos instituídos pelas forças de segurança que “trazem cidadania" ou “libertam" vulneráveis em ações humanitárias (Larkins, 2013), criticando e desmontando a leitura oficial. A linguagem do meme viabiliza esta ruptura, opondo-se às representações impostas por esta invasão cultural (Freire, 1981), identificada com a prática “pacificadora" de “ganhar corações e mentes". O meme é, dessa forma, coletivo e dialógico, rompendo não somente com o individualismo, mas com o determinismo que identifica na realidade atual a semente de um futuro perigoso, notadamente exemplificado na expressão “semente do mal", utilizada por policiais para descrever crianças moradoras das favelas e que devem ser tuteladas por “líderes competentes". Esta visão de perigo gira particularmente em torno da figure mítica do traficante de drogas, acusação repetidamente levantada contra vitimas negras da violência, policial e de Estado, como Amarildo e Marielle (Pennafort, 2021).

Assim, com base nesse princípios, chegamos ao cerne do método com o qual venho trabalhando, e que tem proporcionado experiências e reflexões muito interessantes em sala de aula. A abordagem consiste em duas etapas, quais sejam:

1. A análise de discursos visuais sobre a guerra às drogas, lançando mão de uma tecnologia que alunos usam no seu dia-a-dia. Esta prática parte muitas vezes de um debate sobre a realidade que precisa ser contextualizado pelo professor, como um parteiro, visando a promover o pensamento crítico (Freire, 1981). Eu proponho, para isso, as ferramentas do Google, especificamente a busca pelo Google Imagens. Este mecanismo usa um algoritmo social, como outros motores de busca semelhantes, para determinar resultados para uma palavra ou frase pesquisada. A ferramenta é amplamente utilizada por grande parte da população mundial no cotidiano, mas raramente há uma reflexão sobre o seu funcionamento, isto é, os resultados de busca são normalmente encarados como naturais e dados, mistificados, segundo o conceito de Freire. Além disso, por sua característica visual, a ferramenta é particularmente eficiente para desvendar o racismo como forma de desumanização que informa práticas e discursos de segurança e desenvolvimento, como a pacificação e guerra às drogas.

Neste primeiro momento, portanto, o professor pede aos alunos para fazerem uma pesquisa no Google Imagens sobre termos como “traficante" ou “bandido". O resultado no contexto Brasileiro e além, inclusive no Reino Unido (Guldberg, 2022), é fortemente racializado mostrando particularmente homens e jovens negros portando armas tatuados e com os rostos escondidos. Como o algoritmo repete e aprofunda discursos da mídia e outros veículos de comunicação, este resultado corresponde à figura mistificada do traficante, tal como enraizada na sociedade brasileira.

O resultado, é claro, corresponde apenas parcialmente à realidade do tráfico de drogas ilícitas. O papel do educador, neste contexto, consiste então em problematizar esta figura mítica como efeito de uma estrutura de racismo, violência, opressão politica e exploração econômica, à qual se origina ainda no Brasil Colônia. Para isso, o educador lança mão de uma analise da estrutura e história do comercio de drogas e a criminalização das mesmas. Importantes autores aqui são Saad, Zaccone e o antigo juiz da Suprema Corte Argentina, Raúl Zaffaroni, esses autores mostram como a história da criminalização da maconha sempre teve o objetivo de controlar a população negra, e como a criminalização visa a um certo elo de uma cadeia de produção e distribuição, que forma pequenos traficantes e serve para concentrar o lucro do tráfico nas mãos de grandes comerciantes em atacado e do mercado financeiro (Zaffaroni, 2006; Saad, 2019; Zaccone, 2007). São estas as representações tornadas visíveis nos resultados do Google Images.

Segundo a situação dos alunos este método pode ser aplicado a vários outras categorias racializadas e coloniais, como “Brasil", “Reino Unido", “desenvolvimento internacional", “migrante" ou “pobreza". Assim, os alunos podem eles mesmos escolher uma categoria que gostariam de analisar (Guldberg, 2022). Objetivando inspirar o olhar crítico dos alunos, o educador pode nessa fase lançar mão de comparações entre resultados. Como exemplo, pode-se escolher um país do norte Global e um país do Sul Global (Guldberg, 2022) ou o par dicotômico “migrante versus refugiado (ou ex-patriado)".

2. Num segundo momento do método, o formato dos memes, facilita uma desmistificação realizada em práticas artísticas que se superpõem aos resultados visuais de categorias e sujeitos como os mencionados, visando proporcionar aos alunos uma experiência interventiva de ação capaz de subtrair uma realidade na qual estão imersos (Freire, 1981). Na prática, esta segunda etapa consiste então em imprimir capturas de tela das buscas realizadas pelos alunos e pelo educador, e empregar algumas intervenções artísticas para subverter tais resultados, desenhando, escrevendo, pintando em cima das imagens.

Em workshops realizados no King's College, UCL e Paris-Dauphine, tal método tem produzido obras de arte no formato de memes, que foram exibidos no espaço físico da universidade e serão exibidos online. Tanto a exibição online como offline, permite uma produção conjunta, criativa e aberta que coloca o ser humano, na sua condição material, como sujeito e objeto de um pensamento crítico. No entanto, o método não se limita a uma problematização. Ele também se propõe a lançar para o espaço online e offline as obras produzidas por alunos como memes, estas mesmas constituem ações que têm o potencial de interagir com a realidade material, particularmente na forma dos algoritmos que regem a vida quotidiana das pessoas conforme a famosa metáfora da caixa-preta (Pasquale, 2015).

Assim, podemos dizer que, segundo o pensamento de Freire, a produção de memes que interrogam criticamente a uma realidade mistificada serve para humanizar os alunos como sujeitos da sua própria historia (Freire, 1981).

Este segunda etapa cumpre, então, o objetivo de empoderar os alunos e proporcionar reflexões críticas e algum engajamento sobre práticas materiais relacionadas à discriminação algorítmica. Tal exercício reforça a criatividade e autonomia dos alunos como sujeitos da sua realidade e não objetos ou receptáculos, nem do ensino do professor, nem como sujeitos passivos diante dos critérios de seleção impostos por algoritmos frequentemente limitados a falsos binarismos, como “traficante" e “cidadão de bem". Ou seja, entre a ameaça e a incorporação controlada. Ao contrário, este exercício permite a alunos pensarem por si mesmos e sobre si mesmos. Ao propiciar um espaço para criar obras de arte que possam ser circuladas online e offline, permite ainda uma prática política além da atividade intelectual, e que visa abrir um espaço a devir num sentido bergsoniano. Ou seja, um espaço produzido coletivamente e criativamente, abrindo-se a um futuro aberto por via da força da criatividade. Aberto e criativo porque não se limita ao resultado de uma interação entre estado ou mercado e cidadãos divididos em categorias estabelecidas no discurso e pratica hegemônicos (Isin, 2008). Ao contrário abre para a invenção de novas categorias e relações entre seres humanos e sua materialidade tendo a consciência como força produtiva ou elã vital (Bergson, 1911).

 

Bibliografia

Bergson, H. (1998). Creative evolution. 1911. Trans. Arthur Mitchell. New York: Dover.
Carvalho, M. (2012). A experiência da pacificação em um conjunto de favelas na Tijuca: rupturas e contradições na gestão da ordem pública. Comunicações do ISER, 67, 172-193.
Freire, P. (1981). Pedagogia do oprimido.
Guldberg, C. (2022). Using Google Images, Maps and Earth to teach critical thinking: Decolonising the curriculum and beyond. Journal of PGR Pedagogic Practice, 2, 61-78.
Guldberg, C. Doctoral dissertation, King´s College London, 2022. Pacification and Citizenship – Performances, Enactments and Ruptures
Isin, E. F., & Nielsen, G. M. (Eds.). (2008). Acts of citizenship. Bloomsbury Publishing.
Larkins, Erika Robb. 2013. ‘Performances of Police Legitimacy in Rio ’ s Hyper Favela.’ Law & Social Inquiry 38 (3): 553–75.
Mattar, F., Chequer, J., & Dias, M. (2010). UPP: tecendo discursos. Democracia Viva, 25.
Pasquale, F. (2015). The Black Box Society: The Secret Algorithms That Control Money and Information. Harvard University Press.
Pennafort, Roberta, Mentiras sobre Marielle Franco continuam a se espalhar três anos após sua execução, BBC News Brasil, 13 March 2021
Saad, L. (2019). “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no pós-abolição. Edufba.
Zaccone, O. (2007). Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2.
Zaffaroni, E. R. (2006). El enemigo en el derecho penal. Buenos Aires, 3.

 
 
Logo

About Us

Get Consultation

Contact Us