Chutando cachorro morto: a construção da imagem pública de Michel Temer em charges e memes

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12 fev

A imagem pública de um governante é alvo constante de disputas de enquadramentos. De um lado, o poder público procura construir uma política de opinião e fabricar uma imagem de sua liderança, de outro, a opinião pública reformula ativamente essa representação e propõe sua própria leitura sobre a figura pública e os acontecimentos, muitas vezes adornando seus estereótipos por meio de mitos e lugares-comuns da política. Aqui, nos concentramos no último eixo de discussões, procurando observar a maneira como são apreendidas e circuladas representações coletivas sobre os sujeitos que ocupam o poder. Esta investigação é parte do artigo de mesmo título, publicado em 2020 pela Revista Logos, e fruto da pesquisa de dissertação de mestrado de Dandara Magalhães, defendida no início de 2020 na Universidade Federal Fluminense. Lançamos um olhar sobre o modo como a imagem pública é construída a partir das imagens que circulam nos media, e observamos como estas ilustrações ajudam a construir adjetivações e enquadramentos próprios sobre determinados personagens da vida pública.

A dissertação analisa como memes e charges constroem, de diferentes maneiras, a imagem pública de um ator político. Tome-se o caso de Michel Temer como objeto. Tendo assumido a presidência da República após um controverso processo de impeachment, Temer ficou marcado pela maior taxa de impopularidade desde a redemocratização do país. Nos dois anos em que ocupou a presidência, o político foi alvo constante de sátiras e recebeu diversas alcunhas nas mídias sociais e fora delas.

Temer sempre foi, de certa maneira, uma figura presente não apenas no noticiário político, dada a proximidade que sempre manteve da esfera do poder, mas também em veículos satíricos, como as charges dos grandes jornais. A novidade, portanto, na passagem pela presidência, foi lidar com uma opinião pública conectada, que se expressava por meio de memes de internet, e que ajudava a constituir, por meio deles, um conjunto de representações sobre a figura do vice-presidente que assumiu o poder.

Memes e charges assemelham-se no tratamento de assuntos contemporâneos, retratando personagens diante de circunstâncias políticas e sociais. Ao passo que as charges historicamente se associam a veículos de imprensa, os memes ganham sua popularidade em função da circulação descentralizada em mídias sociais, proporcionando o que Milner (2012) caracteriza como uma “polivocalidade pop”. Ambas as linguagens, portanto, nutrem semelhanças e diferenças no modo como são produzidas, circuladas e consumidas. Em que pesem essas características peculiares aos formatos, ambas exploram as representações da figura do ator político junto a uma dada esfera pública.

Partindo desta leitura, a comparação entre as duas linguagens pretende aprofundar as relações que reconhecidamente ambas nutrem entre si. Do ponto de vista material, muitas charges são, hoje, rotineiramente circuladas nas mídias sociais e ganham, portanto, status de memes de internet. Em contrapartida, a linguagem dos memes vem gradativamente se apropriando de elementos típicos das charges, ao apresentar representações caricaturais sobre personagens ou incorporar diálogos e ações em suas ilustrações.

Imagem e representação: controle e perda de controle da imagem pública

Temer tem expediente em charges na imprensa cotidiana há algumas décadas. Engana-se quem imagina que a associação entre o ex-presidente e um personagem vampiresco, como o Conde Drácula, nasceu na internet. Ainda em 1997, uma charge de Chico Caruso, publicada no jornal O Globo, de 9 de fevereiro, já empregava essa metáfora. Na época, Temer ocupava a Presidência da Câmara dos Deputados, e passou a figurar cotidianamente em veículos de imprensa, em função de sua atuação na articulação das pautas do Congresso. A charge de Caruso, àquela altura, era uma resposta à expressão utilizada por Antônio Carlos Magalhães, então Presidente do Senado Federal, para qualificar Temer, quando o chamou de “mordomo de filme de terror”. Nos anos seguintes, Michel Temer foi, em diversas outras ocasiões, associado a um vampiro em charges veiculadas pelos grandes jornais.

Tais enquadramentos reforçam aspectos que apresentam ao político uma espécie de desconstrução de sua imagem pública, obrigando-o a um exercício de recuperação ou reposicionamento da imagem, no que Gomes caracteriza como uma política de imagem. A política de imagem é responsável por apresentar modelos de gestão da imagem pública, de forma que a imagem de um determinado ator político aproxime-se o máximo possível dos contornos a ela atribuídos. A comunicação política atua na gestão da imagem do político, e este, por sua vez, torna se, em grande medida, dependente desta imagem, pois as críticas que incidem sobre sua imagem incidem também sobre seus atos, e, portanto, ferem sua reputação. Chargistas, cartunistas e criadores de memes, entre outros, atuam como agentes mediáticos da política de imagem, operando tanto na ponta da interpretação da imagem controlada emitida pelos atores políticos quanto na ponta da desconstrução desta mesma imagem, associando a ela novos e antigos estereótipos.

Se as críticas à política de imagem, provenientes dos meios de massa, eram relativamente fáceis de controlar ou contornar, em função da escassez de seus canais, no ambiente digital, as disputas se tornam ainda mais acirradas, com múltiplas vozes concorrendo para afirmar seus respectivos enquadramentos. Para além das campanhas eleitorais, a imagem é disputada nas mídias sociais também por redes identitárias na construção de narrativas e na performatização de ações coletivas e mobilização de micro-públicos. Desse modo, a sátira à imagem pública de um governante assume também o caráter de cobrança por prestação de contas ou accountability.

Assim, o exercício ambivalente proporcionado por este ambiente de polivocalidade das mídias sociais age no sentido do poder público em relação à esfera pública, quando este procura envolver sua imagem com arquétipos como os do herói, do líder charmoso ou daquele que é igual a todo mundo, ou, reversamente, da esfera pública em relação à esfera do poder, quando aquela se apropria de representações previamente criadas ou cria novas para difundir suas próprias narrativas.

Quando Temer se apresenta, em dezembro de 2015, como alguém que passou quatro anos como um “vice decorativo”, sua intenção era ressaltar a natureza ordeira e subserviente através da qual gostaria de ser enxergado. A expressão, entretanto, é rapidamente incorporada ao repertório popular, e passa a dar vazão a uma ação de deboche, tornando a adjetivação um sinônimo de inutilidade, e consequentemente esvaziando de sentido a imagem que Temer originalmente gostaria de imputar a si mesmo.

Charges e memes: perspectivas de aproximação e distanciamento dos gêneros

A caricatura de filiação francesa se estabeleceu na imprensa brasileira ‐ e, a seguir, migrou também para a televisão e a internet. Gombrich, na página 284 do seu livro, reconhece nas ilustrações humorísticas do século XIX uma roupagem quase surrealista, que, na caricatura, por exemplo, é exposta na maestria da caracterização fisionômica. As histórias ilustradas são, a exemplo da literatura, uma maneira de desenvolver narrativas.

A charge aproximou-se gradativamente das histórias em quadrinhos e passou, em muitos casos, a desenvolver uma narrativa sequencial, através de séries publicadas por chargistas.

Uma série elabora elementos referenciais internos à narrativa e geralmente está relacionada a um episódio específico da conjuntura nacional. A charge surge, portanto, como uma extensão do trabalho dos caricaturistas, incorporando uma natureza política e satírica, que tem por objetivo ilustrar uma opinião a respeito de um acontecimento. Como é fruto de um autor identificável, reproduz uma interpretação das notícias ou dos acontecimentos políticos do momento, com um viés ideológico explícito.

Veículos noticiosos vêm, de alguma maneira procurando adaptar-se às mídias sociais, e passaram a compartilhar as charges publicadas em seus jornais também em contas em plataformas como o Instagram. O movimento de adaptação de jornais como a Folha de S. Paulo ao leitor digital na última década é característico de um cenário de mudanças profundas na experiência de consumo de notícias. Hoje, há uma linha tênue que separa charges de memes. Isso porque muitas charges publicadas por grandes jornais acabam viralizando no ambiente digital, sofrendo uma série de adaptações e se convertendo em memes. Por outro lado, alguns memes desenvolvem uma leitura aguçada sobre os acontecimentos políticos e são frequentemente descritos como “a charge do século XXI”. Para entender as semelhanças e diferenças entre essas linguagens, é preciso ter em mente que, mais do que uma expressão artística, o meme é também uma forma de sociabilidade.

Segundo van Dijck (2013), a nova infraestrutura da mídia digital transforma hábitos que antes eram manifestações casuais e efêmeras da vida social em uma economia de comportamentos, que reestrutura a comunicação pública e privada no ambiente digital. Desse modo, os memes se tornam um veículo de expressão ou comunicação, capaz de refletir aspectos da cultura local.

As particularidades de um meme são responsáveis simultaneamente por diferenciá-lo de outros e por associá-lo a uma família específica. É através delas que se torna possível reconhecer um conjunto expressivo, como memes sobre um determinado assunto. Não há necessariamente uma cadeia produtiva marcada pela serialidade, como é o caso de alguns conjuntos de charges, mas há, sem dúvida, elementos que distinguem entre si grupos de memes.

Em última instância, memes integram o repertório da discussão política na internet, agindo como facilitador para o engajamento na agenda pública. É bem verdade que eles performam um papel singularmente persuasivo na circulação de desinformação no ambiente online, mas atuam também inegavelmente como comentários sociais que favorecem a construção de imaginários políticos, repletos de conexões com a cultura pop. Nesse sentido, os memes são uma manifestação de engajamento que pode favorecer a disseminação de mensagens persuasivas no contexto político onde muitas das vezes o ator político é o objeto e não sujeito da mensagem.

As charges, assim como os memes, são impregnadas de intertextualidade, intencionalidade e calcadas em elementos que são facilmente apreendidos pela cultura popular. Entretanto, respeitadas as semelhanças entre ambas as linguagens, é preciso reconhecer que memes e charges guardam diferenças importantes entre si. Se as charges são, na maior parte das vezes, ilustrações que atendem a um estilo autoral, e integram, quando publicadas por grandes jornais, uma voz editorial previamente constituída, os memes se caracterizam como conteúdos criados generativamente, através de uma expressão da criatividade vernacular, e circulam simultaneamente pelo que Patrick Davison chamaria de uma web irrestrita, aquela em que não se é possível identificar a autoria dos emissores, e uma web restrita, aquela em que os conteúdos publicados estão associados a uma identidade individual. Esta liberdade conferida pela ausência de uma associação explícita a um autor, tal como na avaliação de Davison estimula não apenas novas plasticidades, mas também e sobretudo uma ausência de constrangimentos na crítica social e política a que o meme dá vazão.

Para refutar ou sustentar as discussões aqui elencadas, em artigo recentemente publicado pela Revista Logos (Vol. 27, Nº01) estruturamos uma metodologia de análise de enquadramentos que compara os memes e charges do governo Temer procurando identificar as similaridades e divergências nos conteúdos circulados no período. Leia o artigo na íntegra!

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