
Quando Nelson Teich assumiu o Ministério da Saúde após a controversa demissão de Luiz Henrique Mandetta, a Folha publicou uma matéria sobre os sósias sombrios do novo ministro. Os doppelgängers de Teich seriam o mordomo da família Adams, Tropeço; Bento Carneiro, personagem de Chico Anísio; Canceroso, vilão de Arquivo X; o Fantasma do Natal Passado, do filme Os fantasmas se divertem; e até o cantor Mick Jagger (admitido no grupo dos sinistros por ser notadamente pé frio).
As comparações macabras não se restrigem, claro, a Teich. A política pode bem se tornar um filme de terror se lembrarmos dos memes que comparavam Dilma Rousseff ao boneco assassino Chuck, Michel Temer ao conde Drácula e José Serra a Nosferatu.
Aliás, as comparações aterrorizantes de Serra extrapolam o universo cinematográfico com a série de memes “Separados por um…” Trata-se de um Reverse Captioning, ou seja, uma sequência de piadas produzidas a partir de uma mesma legenda, modificando-se apenas a imagem de fundo. Aqui, os indesejados irmãos gêmeos do Senador são a autora de novelas Glória Perez (separados por uma peruca) e dois personagens de Os Simpsons: Homer (separados por um Bart) e Sr. Burns (separados por um desenho). Com isso, descobrimos, inclusive, um parentesco entre Serra e Alckmin, ambos gêmeos do decrépito Burns.
A analogia feita pelos look-alikes se dá a partir da semelhança física, o que faz com que a comparação, em certa medida, nos pareça objetiva. Afinal, quem vai discordar que o ex-governador Pezão não é a cara do fantasma do filme Ghost?
Mas como nos mostra Michel Foucault, em As palavras e as coisas, as similaridades que constatamos no mundo são sempre decorrentes da aplicação de um critério prévio. Foucault fala em uma “tábua” ou um “quadro”, onde se deitam nossas impressões sobre o mundo, mas que traz de antemão “uma definição dos segmentos sobre os quais poderão aparecer as semelhanças e as diferenças”.
O filósofo traz uma boa ilustração desse conceito: a enciclopédia de Borges. Um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges cita “uma certa enciclopédia chinesa” que divide os animais segundo as classificações mais loucas, como “pertencentes ao imperador”, “que se agitam como loucos”, “que acabam de quebrar a bilha” ou “que de longe parecem moscas”. É como se a enciclopédia tirasse o solo invisível que organiza a distribuição dos seres, pois, segundo outros critérios, um cão e um gato que quebraram as bilhas são mais parecidos do que dois poodles entre si.
Foucault, na verdade, segue o rastro de Friedrich Nietzsche, para quem toda linguagem repousa sobre metáforas ‐ comparações arbitrárias e, portanto, não necessárias. Nietzsche considera, por isso, todo conceito um tipo de violência, já que se apagam as singularidades em nome de uma ideia geral. Em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, diz o filósofo: “Assim como é evidente que uma folha não é nunca completamente idêntica à outra, é também bastante evidente que o conceito de folha foi formado a partir do abandono arbitrário destas características particulares e do esquecimento daquilo que diferencia um objeto de outro.” Trocando em miúdos: para que uma folha particular seja considerada como tal, deve-se esquecer tudo o que a torna única (seu tamanho, forma, textura, cheiro, pigmentação) para focar naquilo que ela tem de igual a outras folhas.
É claro que há aqui uma crítica à metafísica platônica, mas não vamos nos ater a isso. O ponto que nos interessa é que, se não são aleatórias as escolhas sobre as réguas de percepção do mundo, então essas escolhas são também políticas. Até porque, embora a comparação pareça um movimento meramente horizontal, ela tem um efeito vertical, pois gera hierarquias. É por esse motivo que Foucault promove em seu livro uma arqueologia, na tentativa de compreender que coerência é esta que estabelece os critérios para se assemelhar ou diferenciar determinados objetos.
Voltando aos nossos memes: agora os look-alikes já não parecem tão despretensiosos assim, certo? E é também a coerência das aproximações apresentadas que devemos buscar para compreendermos o que está em jogo na difusão desse tipo de meme. Por que Lula é descrito por Leonel Brizola como um sapo barbudo? Por que Manuela D’Avila é comparada a uma coxinha? E Bolsonaro a uma galinha? Segundo quais critérios, essas semelhanças foram possíveis? E mais: por que tais critérios foram escolhidos para se determinar os sósias de cada político?
Estas são indagações necessárias, considerando-se que o humor tem um amplo histórico de corrosão da autoridade política, como bem nos mostra Robert Darnton, em O diabo na água benta. Mesmo discursos longe dos padrões oficiais, como os libelos na Revolução Francesa ou os memes atualmente, podem ter efeitos surpreendentes ‐ da estatura de um novo contrato social.
O ditado diz que toda brincadeira tem um fundo de verdade. Eu, pessoalmente, começo a acreditar no contrário: toda verdade é um pouco zoada.
Referências
DIAS, Natalia. O Crowdfunding a partir das perspectivas sobre a cultura material – o processo comunicacional do Projeto Mola Structural Kit. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, UFF, 2018.
CHAGAS, Viktor (org.). A cultura dos memes: aspectos sociológicos e dimensões políticas de um fenômeno do mundo digital. Salvador: EDUFBA, 2020.