#BlackLivesMatter + #BlackOutTuesday: quando o ativismo colide com o ativismo

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02 jul
Por
Natalia Dias
Mestra e Doutoranda em Comunicação pela UFF.

Sabendo que um meme, em linhas gerais, é a apropriação de uma peça-matriz aplicada iteradamente a um determinado contexto, pode-se dizer que a hashtag #BlackLivesMatter tornou-se um meme de ação coletiva e deu origem a um dos movimentos sociais mais efervescentes dos últimos anos. Tornada proeminente nos idos de 2013, a expressão #BlackLivesMatter (ou às vezes simplesmente BLM) foi usada para identificar manifestações contra a absolvição de Geroge Zimmerman, durante um tiroteio que matou o jovem Negro, Trayvon Martin (em 2012). Em 2014, as reivindicações ganham ainda adesão de diferentes segmentos e tornam-se manifestações que ocupam as ruas nos Estados Unidos, após mais duas mortes de negros em diferentes cidades.

Desassociado de uma estrutura organizacional clássica de movimentos políticos, sem porta-vozes ou lideranças claramente identificadas, o movimento #BlackLivesMatter ganhou destaque internacional e se tornou uma espécie de fundação. Criada em 2013, a organização global oriunda dos protestos da população negra está presente nos EUA, Reino Unido e Canadá. Sua “missão é erradicar a supremacia branca e construir poder local para intervir na violência infligida às comunidades negras pelo Estado e pelos vigilantes” (BLACKLIVESMATTER.COM, 2020).

Em 2016, o BLV também foi incluído na pauta dos movimentos negros brasileiros, que endossaram a luta cotidiana contra o massacre de pessoas negras e faveladas especialmente durante operações policiais. A apropriação da hashtag em inglês, e também na tradução livre para o português #VidasNegrasImportam, ganhou as redes rapidamente, se unindo ao grito mundial.

De lá para cá, quatro anos se passaram, e a hashtag, tanto em inglês, quanto em português, continua sendo evocada, cada vez com maior entusiasmo, em (manifest)ações anti-racistas. Em maio, no meio da pandemia causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), mais um negro estadunidense, de nome George Floyd, morreu nas mãos de um policial branco. Protestos em larga escala na cidade da vítima, Minneapolis, catalisaram ações similares em diversos pontos do planeta em prol de justiça e contra o massacre do povo negro.

Nesse mesmo período, no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, entre o mês de maio e junho, várias pessoas negras (e moradores de favelas) foram assassinados, também por policiais. Uma dessas vítimas é João Pedro, um menino negro de 14 anos, morador da favela do Salgueiro, que foi alvejado pelas costas, no peito, durante uma “visita” de policiais à comunidade. Manifestantes cariocas se reuniram em frente ao Palácio Guanabara ‐ sede do Governo Estadual (responsável pelas operações policiais do estado) ‐, cobrando justiça e também um posicionamento do Governador Wilson Witzel (PSC) sobre os múltiplos assassinatos de pessoa negras nas favelas.

#BlackOutTuesday

No meio de sucessivas manifestações (em protestos online ou nas ruas), após o assassinato de George Floyd, de João Pedro e de outros tantos negros, alguns movimentos propuseram uma ação coletiva que se baseava no uso de uma imagem toda preta no feed, seguida da hashtag #BlackOutTuesday. Originada por um grupo de cantores, a proposta ganhou particularmente adesão no Instagram, que é uma rede que preza pela sociabilidade a partir de fotos. O intuito inicial era de mostrar que as vidas negras importam bem mais que a felicidade ostentada ali diariamente. O engajamento surtiu efeito rapidamente e diversos perfis ao redor do mundo seguiram o manifesto e publicaram uma imagem na cor preta. Muitas pessoas, ao entenderem que postar uma foto de uma imagem preta era endossar a causa anti-racista, utilizaram a hashtag #BlackOutTuesday e complementaram com #BlackLivesMatter. No entanto, o que era para ampliar a força do movimento, desarmonizou-o.

Hashtag como uma prática de ativismo digital: #BlackLivesMatter ≠ #BlackOutTuesday

O uso de uma hashtag visa referenciar um tema dentro da internet, para facilitar a busca. O ativismo digital utiliza a hashtag como um suporte para conectar os agentes que estão envolvidos em uma dada causa ou mobilização. Elas marcam posições que podem confrontar grupos ou reunir outros, sendo também um impulsor comunicativo perante a sociedade (PRUDENCIO, 2014). Ou seja, as hashtags são formas expressivas que demarcam uma ação política na esfera online (e que pode estar em consonância com ações nos espaços urbanos), cujo repertório é absorvido pelos atores que se identificam com a causa, ampliando a noção de luta e tornando o ativismo mais institucionalizado (PRUDENCIO, 2014).

No caso da hashtag #BlackLivesMatter, seu uso também vem auxiliando na proteção dos manifestantes que estão nas ruas. Ao postarem atualizações sobre a atividade utilizando a hashtag da causa, é possível saber o que está ocorrendo e, caso necessário, acionar outras medidas protetivas aos ativistas que estão na linha de frente.

Como a mobilização do #BlackOutTuesday ocorreu no mesmo dia em que diversas pessoas em cidades da França e dos EUA foram as ruas, as publicações com uma foto preta que utilizavam também a hashtag #BlackLivesMatter, atrapalhou a vigilância e prejudicou um dos modos de articulação (e proteção) dos manifestantes. Ou seja, o uso de hashtags da mesma forma que potencializa a reverberação de lutas importantes, também pode fragmentar as informações veiculadas às palavras-chave. Mesmo que a intenção de aglutinar as duas hashtags tenha o sentido positivo, isto nem sempre é suficiente. Para além de um dispositivo meramente técnica, as hashtags são também estratégias sociais de ações políticas.

Eu também quero participar: efeito bandwagon (ou efeito Maria-vai-com-as-outras)

A visibilidade é uma das chaves para a interação nas redes sociais. Kelly Prudencio (2018, p.257) afirma que “toda ação política contém em si a necessidade de apresentar-se publicamente como justa, ou seja, ser justificada publicamente”. Outro fator não menos importante é a oportunidade. Quando uma determinada causa desperta alguma comoção, quando o debate público ganha proporções inimagináveis sobre um dado tema, quando personalidades públicas assumem publicamente posições em função de um dado acontecimento, todos esses cenários contribuem para que a repercussão de uma pauta conte, cada vez, com mais adesões. Nas redes sociais, o movimento é muito semelhante. Tanto mais pessoas tuitam sobre determinado assunto, chances há que se tenha ainda mais pessoas falando sobre ele na sequência. É o que alguns cientistas políticos denominam de efeito bandwagon. O efeito bandwagon é a influência do meio social na decisão do indivíduo. Trata-se de um efeito cognitivo, no sentido que, se em um determinado contexto a maioria tende a assumir uma dada posição, outras pessoas tenderão a concordar, em função do posicionamento da maioria (SANTOS, 2016; SOARES, 2020).

Quando artistas como Rihanna, Elton John, Taylor Swift, Justin Bieber, Cardi B, Shakira, Demi Lovato e muitos outros, que têm uma legião de fãs e seguidores, apoiam a causa #BlackOutTuesday, tende-se a ter uma adesão massiva à iniciativa a seguir. Isso é resultado do efeito bandwagon. Relacionado com outro efeito largamente estudado nas discussões políticas, a chamada seleção inadvertida, redes sociais online como o Twitter e o Instagram, que utilizam as hashtags como actantes, permitindo aos usuários seguirem o fio de uma discussão pública em evidência a partir das publicações indexadas com uma determinada palavra-chave, proporcionam um ambiente em que os usuários com grande capacidade de influência social podem inspirar posicionamentos semelhantes e, com isso, interferir no debate público nessas plataformas com alguma facilidade. Entretanto, esse movimento nem sempre surte efeitos positivos. O que se quer ressaltar aqui é que o conflito gerado pelo uso das duas hashtags, #BlackLivesMatter e #BlackOutTuesday, ainda que ambas estivessem em prol de uma mesma agenda, ao invés de ampliar o alcance e o engajamento de ativistas políticos nas manifestações e protestos em curso, acabou atrapalhando algumas das ações táticas naquela ocasião.

Esse episódio demonstra como o ativismo na rede, mediado por hashtags, apresenta questões que são, de certo modo, inerentes às plataformas, e a não-observância desses aspectos pode até mesmo prejudicar a sincronia entre os protestos online e nas ruas. Ainda que o movimento #BlackOutTuesday tenha sido criado com a intensão de ampliar a luta, a ação resultou uma desarmonia dentro da própria rede ativista. O comportamento mimético que levou diversos usuários a adotarem imagens pretas nas mídias sociais precisou ser contestado a partir de uma ação pedagógica, que procurava explicar os problemas decorrentes da utilização das duas hashtags em conjunto e pedia que postagens indexadas com a hashtag #BlackLivesMatter que não tinham relação com os relatos das manifestações nas ruas fossem apagadas.

Conhecer as affordances das plataformas e saber empregá-las taticamente em manifestações políticas é um fator de letramento midiático importante para o ativismo contemporâneo. O movimento #BlackLivesMatter é um bom exemplo para demonstrar o quão complexo tem se tornado o ativismo digital.

Referências

PRUDENCIO, Kelly. Micromobilizações, alinhamento de quadros e comunicação política. Revista Compolítica. Volume, 2, 2014.

RIZZOTTO, C., SARAIVA, A.; NASCIMENTO, L. #Elenão: conversação política em rede e trama discursiva do movimento contra Bolsonaro no Twitter. In: Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 27, 2019. Anais do 27º Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Porto Alegre: Compós, 2019.

SANTOS, J. G. (2016). Turbulência política: pluralismo caótico, mídias sociais e novas dinâmicas de ação coletiva. Compolítica, 6(1), 187-215.

SOARES, A. A. (2020). A Espiral do Silêncio. Compolítica, 10(1), 161-178.

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