Por uma crítica memeal

02 maio
Por
Rangel Ramiro Ramos
Mestre em Comunicação pela UFF. Doutorando em Ciência Política pela UFPR.

Como produtos estéticos de uma cultura popular, os memes de internet não são apenas lugares de memória, mas também estão sujeitos à crítica. Eles escapam às constrições da obra de arte canônica, contudo, não deixam de desenvolver uma linguagem própria. O objetivo deste post é atentar para duas questões: a primeira é como estabelecer uma possível crítica de memes? A segunda é para que serve uma crítica de memes?
 
Para iniciar nossa jornada em busca de possíveis respostas, vamos afinar alguns termos. É importante, por exemplo, ter em conta que “mimese" ou “mimético" – raízes próximas de mimeme (aquilo que é imitado ou copiado), que, por sua vez, serviu de origem ao vocábulo “meme", idealizado por Richard Dawkins – se referem a algo que recria a realidade. Já o termo “cânone”, donde provém “canônico", é uma palavra transliterada do grego para o português, e significa régua. A bem da verdade, cânon era o nome de um instrumento de medir usado na Grécia Antiga. Quando falamos que algo é canônico, parte-se do pressuposto que tal objeto passou por um conjunto de normas que medem sua confiabilidade ou não. Para simplificar, podemos presumir que arte popular é toda forma de arte que não é canônica, ou seja, não se submete ao cânone artístico para ter sua autenticidade reconhecida. Os termos “popular" e “canônico" serão usados neste texto a partir dessa perspectiva.
 
Esclarecidos tais termos, confiamos que o meme de internet não requer aprovação canônica para ser reconhecido e apreendido culturalmente. Ele ganha sentido quando o humor que lhe é subjacente vem à tona através de um contexto. O meme é, nesta acepção, expressão simbólica e material do espírito humano em sua ansiedade por traduzir o mundo a partir de sua própria percepção e força artística.
 
Sendo assim, o meme está invariavelmente em relação ao cânone ocupando uma das duas posições a seguir. Ora ele o satiriza e questiona seus limites e regulações, reinterpretando os dizeres oficiais, e tornando-se mimético por meio de uma representação irônica da realidade social, própria dos discursos e narrativas de enfrentamento do poder instituído, que têm por base o humor. Ora ele expressa apoio e promove reconhecimento. Nesse caso, como manifestação popular, o meme se insere na luta política, cooptando apoiadores e estimulando a constituição de redes de solidariedade.
 
Limor Shifman (2014; conferir também Chagas et al., 2016), defende que os memes podem ser categorizados de três maneiras: memes de persuasão, memes de ação coletiva e memes de discussão pública. Grosso modo, os memes de persuasão reforçam o caráter retórico e são usados como instrumento ou recurso de publicidade, a fim de propagandear uma dada mensagem. Os memes de ação popular são aqueles que engajam muitas pessoas em uma determinada causa ou ação, como o “balde de gelo", por exemplo. Já os memes de discussão pública são peças na maioria das vezes amadoras, com montagens visuais ou audiovisuais que trazem um teor de crítica e/ou ironia, cumprindo assim a dinâmica já citada acima dos memes como questionadores dos limites e regulações, que reinterpretam os dizeres oficiais satirizando o poder instituído por meio do humor.

Como desenvolver uma crítica de memes?

 
A categorização apresentada por Shiffman é importante porque, para responder nossa primeira questão (como desenvolver uma crítica de memes?), recortamos os memes de discussão pública a fim de estabelecer as suas relações com a arte popular. Os memes de discussão pública revelam seu humor na sátira, que, para Northrop Frye, é interpretada como um olhar irônico lançado sobre um grupo “especial, considerado mais sério, mais autorizado, mais educativo e próximo ao real e verdadeiro do que o resto” (FRYE, 1973. p. 59) com o interesse de levar a discussão a outro patamar, normalmente o da deslegemitzação. Logo, podemos concordar até aqui que a ironia é a base da atitude política dos memes de discussão pública.
 
Depois de escolher a categoria de meme a ser analisada, a segunda etapa para estabelecer uma crítica de memes é identificar um objeto relacionado ao recorte definido. Aqui, utilizaremos o vídeo redublado de Maria Bethânia recitando em forma de poema as palavras que o ministro Luís Roberto Barroso direcionou ao também ministro Gilmar Mendes durante plenária no Superior Tribunal Federal.
 

Os memes não podem, e nem devem ser restringidos apenas ao conteúdo imagético publicado nas mídias sociais. A paródia apresentada em formato de vídeo é também mimética, por ser uma recriação da realidade a partir de uma remixagem da linguagem artística, da expressão de uma artista (poeta, cantora), da fala de um juiz da suprema corte… O meme em questão é derivado de um vídeo em que Maria Bethânia recita poemas para um programa do canal Arte. Ao invés da declamação original, tem-se uma narração apócrifa que recita ipsis litteris as palavras do ministro Barroso. O que antes era uma manifestação de repúdio e agravo do ministro se torna um poema, em operação que ressalta, com ironia, o tratamento polido e rebuscado entre as autoridades.
 
Categoria definida e objeto escolhido, a próxima etapa é identificar o ponto de inflexão do meme com a expressão simbólica e material do espírito humano em sua ansiedade por traduzir o mundo a partir de sua própria percepção e força artística. Nesta análise começamos por entender que os memes de discussão pública são frutos de uma postura irônica, onde a política, os políticos e outros atores são objeto de sarcasmo e não a mensagem em si. A ironia apontada pelos memes de discussão pública é o que nos liga à arte popular. Segundo Linda Hutcheon (1985, pág. 47) “a ironia parece ser o principal mecanismo retórico para despertar a consciência do leitor". Para a autora, a ironia é estratégica no discurso paródico, a fim de permitir ao decodificador interpretar e avaliar. A ironia não toma partido, ela não define nada, apenas lança sobre o receptor uma possibilidade de releitura da realidade. O meme de discussão pública não pretende ser persuasivo, tampouco requer ou incentiva uma ação popular. Ele incomoda, causa estranhamento, traz reflexão por meio do riso sarcástico. De tão engraçado torna-se sério.
 

Para que serve uma crítica de memes?

 
Mas, apenas estabelecer um caminho para a crítica de memes não é suficiente. Então buscaremos agora responder à segunda questão proposta por este artigo (para que serve uma crítica de memes?). Para isso, vamos partir da reflexão de que o humor, a sátira e a ironia dos memes de discussão pública trazem, tanto no campo político quanto no social, uma intencionalidade ora explícita, ora implícita.
 
Para elevar nossa compreensão sobre o serviço de uma crítica de memes é assaz fundamental aceitar que as relações provocadas por um meme são mais importantes do que o discurso produzido por meio dele. O humor aproxima e familiariza o público com a política através da brincadeira. Portanto, uma crítica de memes serve para perceber o humor como instrumento de produção de sentido, tendo na brincadeira seu principal recurso de discussão política.
 
Limor Shifman (2014) reforça que os memes não surgem na internet de maneira aleatória e arbitrária. Seja por construir alianças ou por reforçar oposições, os memes de internet demandam sempre uma composição conjunta e co-criativa, isto é, são fruto de um processo dialógico e intersubjetivo ancorado na linguagem e na produção de sentidos, como a ironia.
 
O vídeo de Maria Bethânia, embora enquadrado numa certa posição histórica e contextual, ganha realidades possíveis quando inserida em outros mundos de linguagem, portanto, novos contextos. Hutcheon (1985, pág. 48) diz que “a paródia é, pois, na sua irônica transcontextualização e inversão, repetição com diferença". Hutcheon defende que está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância que geralmente é assinalada pela ironia. Para a autora a ironia pode ser tanto criticamente construtiva quanto destrutiva. Isso não está no humor em si, mas no vaivém intertextual da cumplicidade e da distanciação do leitor em relação ao objeto.
 
Para Chagas (2016, pág. 99) na ação política a ironia “tenciona a ambiguidade, sem jamais favorecer uma leitura definitiva". O autor afirma que ao incorporar a ironia na metáfora da brincadeira política surge um jogo duplo – “cujo potencial criativo é expresso através da superposição de diferentes camadas semânticas a uma mesma mensagem". Mas, como bem sabemos, nenhuma narrativa é ingênua, Searle (2001) apresenta o conceito de intencionalidade explicando que o estado subjetivo do sujeito o relaciona com o resto do mundo e o nome geral dessa relação é intencionalidade. Sobre estados subjetivos o autor inclui crenças e desejos, intenções e percepções, assim como amores e ódios, temores e esperanças. A Intencionalidade, em termos gerais, proporciona diversas formas da mente se referir à objetos e estados de coisas no mundo.
 
Portanto, para compreendermos o meme de internet como uma manifestação artística, partimos da sua admissão como símbolo, entendendo-o, conforme Frye (1973, p. 75), como “unidade de qualquer estrutura literária que possa ser isolada para apreciação crítica. Uma palavra, uma frase ou uma imagem, usadas com algum tipo de referência especial". Essa conceituação permite firmar um ponto de apoio na busca por estabelecer princípios para enquadrar o meme como arte vernacular, já que a sátira é um elemento tanto da arte popular quanto da atitude política dos memes de discussão pública. O meme é, portanto, um conjunto de operações de produção de sentido. O meme não se resume ao vídeo ou as peças visuais e audiovisuais que circulam sobre o mesmo tema, tudo isso é um só meme, pois é nas relações e nas interpretações pessoais que a ironia se materializa e traz a reflexão proposta de forma mimética.  
 

Meme, Arte e política!

 
A redublagem apresentada aqui surge de um momento singular da política brasileira, em que o poder judiciário se vê incumbido de frequentemente ter que julgar ações envolvendo políticos nos crimes conhecidos como de “colarinho branco". Por se tratar de julgamentos cujas decisões implicam também em efeitos políticos, os ministros têm sido alvo constante de pressão política exercida a partir dos mais diversos grupos de interesse. Some-se a isto, o fenômeno da midiatização desses julgamentos, que, por vezes, modula as falas e comportamentos dos próprios ministros em sessões televisionadas, e temos os ingredientes para a leitura de que os julgamentos são políticos porque são espetacularizados ou são espetacularizados porque são políticos.
 
Na sessão do dia 21 de março, Barroso interrompeu o voto de Gilmar Mendes, quando o ministro posicionava-se contrário à proibição de doações de empresas a políticos e partidos durante campanhas eleitorais, e citou decisões recentes do Supremo que não refletiam a posição majoritária do colegiado. Nas palavras de Mendes, o STF vem sofrendo com “manobras”, em que ministros decidem questões nas próprias turmas, sem levar a discussão ao plenário. Como se viu citado, Barroso então rebateu o colega com frase que ganhou grande repercussão:
 

Me deixa de fora desse seu mau sentimento, você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso, e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado. É um absurdo vossa excelência vir aqui fazer um comício cheio de ofensas, grosserias. Vossa excelência não consegue articular um argumento, fica procurando. Já ofendeu a presidente. Já ofendeu o ministro Fux. Agora chegou a mim. A vida para vossa excelência é ofender as pessoas. Não tem nenhuma ideia, nenhuma, nenhuma, só ofende as pessoas.

 
No vídeo original, Maria Bethânia está declamando o poema “Os três mal-amados", de João Cabral de Melo Neto, o que, por si só, já evoca alguma intertextualidade. Na cultura popular, “mal-amado” é uma expressão depreciativa atribuída a um sujeito que é frustrado, sente inveja, vive mal-humorado. No registro audiovisual original, a cantora recita:

https://youtube.com/watch?v=FpGqaBk7nlQ

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O poema de João Cabral de Melo Neto é carregado de pesar. O eu lírico lamenta o que o amor fez com ele. Mas o mal-amado sofre, na verdade, de um excesso de amor. Assim, o texto poético, declamado em tom de voz similar aos impropérios proferidos pelos juízes na corte, faz menção direta não apenas ao confronto de posições entre os ministros, mas também aos exageros cerimoniosos contidos nas respectivas falas, notadamente, é claro, a assertiva de Barroso contra Mendes. É difícil supor que a escolha desse trecho recitado tenha sido aleatória. A paródia não encaixa simplesmente a fala em outro contexto, mas provoca um sentimento, uma reflexão. O lamento de Luís Roberto Barroso, diante do colega Gilmar Mendes, foi recebido pela audiência nas mídias sociais com grande clamor e entusiasmo. A afirmação emblemática de tão mimética tornou-se estampa de camiseta a ser comercializada nas redes. Certamente o ministro não tinha a intenção de ser poético em seu desabafo. Mas, ao reclamar de Mendes, criou uma situação propícia à ambiguidade. Ali, afinal, quem é o mal-amado?

Leve-se em consideração, ainda, o contexto do próprio João Cabral de Melo Neto, visto pelos críticos como um poeta seco, que trata das dores e das dificuldades do sertão, que traz indignação em sua composição poética. Um poeta intelectualizado de linguagem crua, direto em suas palavras.

O meme é esta imbricação de significados. Traz reflexão tanto quanto recria aquilo que já está consolidado. Mas, também não é definitivo ou absoluto. Abre, por meio da ironia e do humor, uma possibilidade de ver a realidade de outra forma. Ao rir pensamos coisas sérias. Leva-nos a perguntar: como pôde o mais alto escalão da justiça de um país, a suprema corte, ter discussões ácidas com ofensas requintadas, mas tão semelhantes com as do cotidiano do homem comum? Essa provocação causada pelo meme é o que o assemelha à arte.

E, o mais próximo que posso chegar de uma compreensão sobre o estranhamento que o meme provoca é confiar que o riso seja, talvez, uma estratégia de ação política. É, por esta razão, que uma crítica de memes torna-se fundamental, um olhar mais apurado, que revela as nuances da ironia, o não-dito da piada que requer uma contextualização. Esses pormenores, percebidos numa crítica de memes, podem fazer o riso tornar-se em experiência de letramento social.

Referências

  • CHAGAS, Viktor. Não tenho nada a ver com isso. In: Internet e eleições do Brasil. Org:  Cervi, Emerson U; Massuchin, Michele G; Carvalho, Fernanda C de. Curitiba: CPOP (grupo de pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública), 2016.
  • FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. Trad: Eugênio S. Ramos. São Paulo: Cultrix, 1957.
  • HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Trad: Teresa Louro Péres. Lisboa: Edições 70, 1985.
  • OSBORNE, Harold. Estética e Teoria da Arte. Trad: Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1986
  • SEARLE, J. R. (2001). Mente, lenguaje y sociedad. Alianza, Madrid.
  • SHIFMAN, Limor. Memes in digital culture. Massachusetts: MIT Press, 2014.
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