Videomemes podem ser politizados?

30 maio

Por
Dandara Magalhães
Mestra e Doutoranda em Comunicação pela UFF.

Em maio de 2018 o rapper Childish Gambino (o nome real do artista é Donald Glover) lançou o seu single This is America, no programa de TV estadunidense Saturday Night Live. Em poucos dias o videoclipe atingiria milhões de visualizações no Youtube e alcançaria o topo dos assuntos mais comentados na ocasião, sendo eleito o vídeo do ano pelo El País. Muitas foram as interpretações sobre os significados estético e cultural do clipe. Foram publicadas inúmeras resenhas e listas de curiosidades que se detinham sobre as críticas levantadas por Gambino, tanto na letra, quanto no videoclipe, que denunciava a espetacularização de chacinas e massacres, e a aparente falta de reação por parte de segmentos da cultura pop. A crítica destinava-se especialmente a artistas que se mantinham passivos, em um país em que, só no ano de 2020, 22% da população morta pela polícia é negra, uma proporção altíssima, e que torna evidente a discriminação racial em países como os Estados Unidos.

This is America levanta, a partir de uma linguagem satírica, questões sociais e culturais próprias das comunidades afro-americanas nos Estados Unidos. Cada detalhe do vídeo foi destrinchado por diversos canais de conteúdo do Youtube, que apontam especialmente para as referências utilizadas por Glover em sua vestimenta, e nas expressões faciais e coreografias, além das diversas simbologias escondidas em passagens do clipe que sugerem representações e imaginários sobre a cultura afro-americana. Em pouco mais de quatro minutos de vídeo, o espectador atento pode perceber referências ao massacre cometido em Charleston, em uma igreja de público negro, ao estereótipo racista do personagem Jim Crown, que explicita o modo como a imagem do negro é vendida e estereotipada pelos brancos ao longo de séculos, entre tantas outras questões.

O debate travado dentro das redes sociais online ‐ especialmente no YouTube ‐ por fãs do rapper e militantes do movimento negro que passam a identificar Childish Gambino como um ator necessário para o contexto contemporâneo é efervescente. Como todos os assuntos que ganham popularidade rapidamente nas mídias digitais, não demorou muito para que os primeiros memes utilizando a temática de This is America surgissem, incluindo imagens estáticas com cenas e personagens icônicos do clipe, paródias ou remixes audiovisuais a partir de outras canções.

Quase instantaneamente, o site VICE publicou uma matéria intitulada “For the Love of God, Don’t Meme Childish Gambino’s “This is America” Music Video” (“Pelo amor de Deus, não façam memes com This is America do Childish Gambino”). O artigo se colocaria contra a produção de memes e defenderia que os conteúdos que faziam remissão ao clipe provocador do rapper apenas “provam o argumento que Glover está tentando construir”, segundo o qual “o modo como a indústria do entretenimento distrai os EUA de seus problemas” seria a razão para a alienação da população diante de questões sociais estruturais. Para a VICE, a produção de memes, portanto, nada mais seria do que a afirmação deste diversionismo, e teria como efeito uma certa indução dos sujeitos à alienação, fazendo com que deixassem de lado uma perspectiva crítica sobre as questões políticas e sociais. Mas será que os usuários que criam e compartilham memes estão mesmo alienados e querem apenas se distrair com conteúdos de humor que têm como base a canção de Gambino?

Uma investigação qualitativa dos memes sobre This is America pode lançar luz sobre este comportamento. A análise exploratória que se segue sustenta, portanto, que a criação e compartilhamento de memes não é algo controlável por si só, e sim uma “resposta” aos produtos culturais postos em circulação, e consequentemente aos problemas sociais refletidos por estes produtos. Um formatos principais que os memes de This is America assumiram foram as paródias audiovisuais, remixes, mashups, e similares, criados e compartilhados a partir do YouTube. Nesta plataforma, esses videomemes encontraram um terreno perfeito para sua disseminação pois, como apontado por Shifman (2012, p. 189):

Por um lado, o YouTube é um hub central ‐ se não o hub central ‐ do conteúdo bottom-up de vídeo. Seu slogan ‐ 'Broadcast Yourself' ‐ captura o uso fundamental do site como uma plataforma para a auto-expressão pública, aberta a (quase) qualquer pessoa. Assim, ele desempenha um papel central na chamada 'Web 2.0' ou 'cultura participativa' (Jenkins, 2006), na qual antigos 'consumidores' ou 'públicos' gradualmente se tornaram produtores e distribuidores de um novo conteúdo (Baym and Burnett, 2009; Lessig, 2008). Nesse sentido, o YouTube contribui para transformar uma civilização 'baseada em leitura' em uma sociedade de 'leitura e gravação' (Hartley, 2004). Ao mesmo tempo, evoluiu como um importante site de divulgação para a mídia tradicional: trechos de programas de TV, videoclipes e outros, não sendo apenas uma plataforma para a transmissão de conteúdo.

“Isso é um celular, é uma ferramenta”: memes e apropriações culturais

Os memes tornaram-se o medidor de popularidade de um assunto dentro do âmbito das redes sociais. Quando surge um escândalo político, uma notícia sobre alguma celebridade ou um lançamento impactante dentro da indústria cultural (como um single ou trailer de um filme blockbuster), a resposta dos usuários através dos memes pode determinar a popularidade ou não de um assunto. Shifman (2014) argumenta que os memes encontram na internet um ambiente ideal para seu compartilhamento em grande escala, devido à rapidez e precisão fornecidas por este meio. Reconhecemos nos três gêneros de memes trabalhados por Chagas e colaboradores (2017) e Chagas (2020), o necessário para a nossa análise dos conteúdos relacionados ao single This is America. Assim, a presente análise procura classificar quais memes, entre aqueles compartilhados em torno do tema do videoclipe e fazendo referência à sua estética e conteúdo, são memes (a) persuasivos (geralmente cartazes ou pôsteres bem produzidos, que buscam passar uma mensagem efetiva, com fácil apreensão e de forma visualmente clara), (b) de ação popular (geralmente alinhados à uma causa, comumente disseminados através de hashtags, como #meuprimeiroassédio ou #EleNão) ou (c) de discussão pública (que costumam se utilizar da evidente incongruência na expectativa, normalmente através do humor).

O próprio YouTube serviu como fonte de pesquisa dos memes aqui analisados. Por meio da ferramenta de busca do site, buscamos pelos termos “this is america” e “this is america meme”, que possibilitou a orientação pelos vídeos mais visualizados. Os videomemes, encontrados no Youtube, seguem predominantemente duas categorias: (1) os remixes e (2) as paródias. Os vídeos remixados são, em sua maioria, conteúdos que remetem a elementos da cultura pop e da cultura de memes, causando efeito humorístico.

Há diferenças importantes entre esses dois formatos. A grande parte dos vídeos que compunham a amostra analisada entre remixes e compilações apresentou viés de discussão pública. Em contrapartida, os videomemes de paródia, apresentaram uma característica mais acentuada de ação popular. Segundo Shifman (2014) ‐ guiada por Bennet e Segerberg (2013), a internet possibilita um maior engajamento nas ações coletivas tomadas a partir de enquadramentos pessoais de ação. Os memes de ação popular são de fácil compreensão e apropriação e conectam o pessoal ao político, geralmente a partir de uma narrativa em que o usuário conta sua história através do conteúdo, gerando uma mobilização coletiva por meio dos sites de redes sociais.

Exemplos como “ISSO É BRASIL”, “This is Nigeria”, “This is America VERSÃO ACRE” e “This is America: Women’s Edit” apresentam roteiros e letras originais, que se baseiam na harmonia e no cenário do videoclipe de Childish Gambino, para contar suas histórias e mostrar outras visões sociais e políticas a respeito não só da vida nos Estados Unidos, como em outros países e a partir de diferentes perspectivas sociais, como as questões de gênero. Esse tipo de interação e pluralidade de questões sócio-políticas levantadas e apresentadas por meio dos videomemes, nos faz contestar a afirmação daqueles que concordam com o argumento do artigo da VICE de que essa produção é contraproducente e de que quem está produzindo memes sobre This is America perdeu todo o ponto central da discussão levantada pelo clipe. Esse uso por parte dos usuários, nos atenta para o fato de que as questões apresentadas por Gambino certamente foram apreendidas por parte dos usuários e, justamente por essa compreensão ter se viralizado e tido tanto impacto, os usuários se apropriaram da linguagem do single para contar sobre seus próprios contextos e lutas sociais.

https://www.youtube.com/watch?v=QW8whgmyTNU

Estas apropriações, fortalecem a compreensão de que os memes têm a capacidade de expandir o leque de opções de participação democrática, de forma que os cidadãos têm a opção de expressar suas opiniões de modo acessível (Shifman, 2012) e os memes de This is America são um exemplo nessa direção. Os conteúdos criados e compartilhados a partir do videoclipe refletem sobre problemas sociais, como o racismo, as desigualdades de gênero, as desigualdades sociais e regionais, e muitos outros temas.

Cultura popular e os fãs como agentes de mobilizações

No caso de This is America, é possível identificar ao menos três tipos de comunidades de fãs. O primeiro compreende fãs que produzem conteúdos para sua própria fruição, isto é, fãs que circulam conteúdos voltados para o próprio fandom. O segundo tipo abrange fãs que se negaram, a exemplo da matéria da VICE, a compartilhar memes relacionados ao conteúdo do single, como forma particular de ativismo. O terceiro tipo compreende fãs que se envolveram de modo mais pessoal e particularizado no debate político a partir de memes de paródia.

Assim como Bennett e Segerberg (2013) observam, a cultura fã pode se organizar coletivamente e (1) se utilizar de um universo ou tema específico de um fandom para aplicá-lo a contextos e mobilizações sociais específicos ou (2) se utilizar dos laços criados por essas redes para mobilizá-los a respeito de uma causa. Essa concepção mostra que os grupos de fãs têm todo o direito de se organizar em torno de problemáticas que sejam relacionadas a questões políticas e sociais, especialmente como em um caso como o de This is America, em que o próprio vídeo já traz consigo uma bagagem e discursos bem politizados.

De forma complementar, Pedelty e Keefe (2010), ao estudarem a música de cunho político e discutirem como ela inspira diálogos entre os fãs, sugerem que discussões políticas estão mais presentes entre os fãs de artistas com maior engajamento político do que entre os de artistas pop das listas de sucesso. Para o artista, é sempre difícil prever qual será a interpretação da sua composição perante sua audiência, mas ainda assim os fãs de músicos politicamente engajados costumam ter uma comunicação mais politizada entre si e em seus fóruns e blogs.

Em maio de 2020, This is America ganhou novo fôlego, durante os intensos protestos que ocorreram após o caso George Floyd, um homem negro, que foi assassinado pelo policial branco Derek Chauvin, sufocando até a morte com o joelho do policial pressionando seu pescoço. A viralização do vídeo do caso provocou uma crescente revolta popular que levou às ruas milhares de manifestantes, mesmo durante a pandemia de COVID-19, para pedir mais regulamentação e treinamento para a polícia. Em muitos pontos do país, os manifestantes entraram em tensão com os policiais, o que gerou uma série de incêndios a prédios e carros e uso de força policial. Na rede social Tik Tok os manifestantes passaram a circular vídeos dos protestos utilizando a música de Gambino para, mais uma vez, ser a trilha sonora de denúncia a indiferença perante o racismo institucional e as violências pelas quais a população negra é submetida diariamente.

Compreendendo que os memes criados a partir de This is America têm múltiplos sentidos e intenções, podemos concluir que distintas formas de participação dessas comunidades vão gerar diferentes percepções a respeito do próprio conteúdo criado, circulado e ressignificado dentro dos sites de redes sociais. Entretanto, todos os formatos exemplificados neste artigo se entrelaçam e, de forma direta ou não, são participações políticas de grupos de fãs.

Referências

BENNETT, W.; SEGERBERG, A. The logic of connective action: Digital media and the personalization of contentious politics. Cambridge University Press, Nova Iorque, 2013.

CHAGAS, Viktor, FREIRE, Fernanda A., RIOS, Daniel, e MAGALHÃES, Dandara. A política dos memes e os memes da política: proposta metodológica de análise de conteúdo de memes dos debates eleitorais de 2014. Intexto, (38), 2017, 173–196. https://doi.org/10.19132/1807-8583201738.173-196

CHAGAS, V. A febre dos memes de política. In: CHAGAS, V. A cultura dos memes: aspectos sociológicos e dimensões políticas de um fenômeno do mundo digital. Salvador: EdUFBA, 2020.

PEDELTY, M, KEEFE, L. “Political Pop, Political Fans? A Content Analysis of Music Fan Blogs”. Music & Politics 4, Number 1 (Winter 2010), ISSN 1938-7687. Article DOI: http://dx.doi.org/10.3998/mp.9460447.0004.103.

SHIFMAN, Limor. (2012). An anatomy of a youtube meme. New Media and Society, 14(2), 187–203. https://doi.org/10.1177/1461444811412160

SHIFMAN, Limor. Memes In Digital Culture, 2014.

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