O messias chegou, mas qual? O papel dos memes na construção de mitos

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12 jun
Por
Guilherme Popolin
Doutorando em Comunicação pela UFF. Mestre em Comunicação pela UEL.

“ele coitado, não aguentou a pressão dos vagabundos, tem muita gente… prefeito, governador, juízes, o STF, Cãmara.estamos lutando contra o mundo pro bem prevalecer.

é complicado, temos que orar muito. pro bem prevalecer.

não podemos perder a fé.

e na hr certa Deus entrará com a providencia, eu creio num Deus maior e mais poderoso do que isso td.

O ministro quando chegou ao RJ, viu muita coisa errada, hospital vazio, super faturamento nas compras, mentiras do prefeito e governador…….é complicado lutar contra essas pessoas.

lamentavelmente”

O trecho acima foi extraído de um grupo bolsonarista, no aplicativo de mensagens WhatsApp, no dia em que o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro pediu demissão – 24 de abril de 2020. Com sua gênese datada em um tempo imemorial, a luta do bem contra o mal permanece na contemporaneidade como uma das forças primordiais a fomentar produtos culturais, abalar discussões sociais e mover a política. Do imaginário, surgem os mitos essenciais que estimulam e corroboram com esta luta, como o Mito do Herói. De Bolsonaro a Lula, diferentes grupos sociais têm suas percepções de mundo moldadas pelo imaginário – um “conjunto difuso de símbolos e imagens”, de onde emergem os mitos (Miguel, 2004). É possível identificar em grupos de diferentes tendências políticas a figura de um messias cuja mensagem mitológica é, hoje, transmitida também por meio dos memes da internet (Shifman, 2014; Chagas e Toth, 2016).

Em momentos de crise, narrativas mitológicas ganham proeminência com o intuito de explicar um fenômeno ou indicar soluções. Não é diferente no Brasil que, desde 2013, enfrenta crises de cunho político, econômico e social ‐ o cenário perfeito para a ebulição de explicações mitológicas. Antes adormecidas, algumas destas explicações voltaram com força total nos últimos anos, como o Mito da Era de Ouro, que imputa aos anos da ditatura militar no Brasil o sentimento falacioso de um período de justiça e harmonia (Popolin, 2019).

Luís Felipe Miguel (2004), em Mito político, aponta que, no início do século XX, Georges Sorel apresentou uma primeira tentativa expressiva a fim de construir um conceito de mito político, descrevendo-o como um fenômeno que emerge de uma determinada base cultural ‐ o imaginário ‐ e, em um estágio anterior à reflexão, evoca sentimentos com o intuito de explicar os acontecimentos. Raoul Girardet (1987), em Mitos e mitologias políticas, aciona a dialética dos contrários como chave de leitura para a compreensão dos mitos, apreendidos como polimorfos e ambivalentes, ou seja, um mesmo mito é “suscetível de oferecer múltiplas ressonâncias e não menos numerosas significações” (Girardet, 1987, p. 15). Com efeito, elementos que indicam dualidade estão presentes em incontáveis memes políticos (Chagas et al., 2017; Shifman, 2014): bem e mal; céu e inferno; e herói e inimigo ‐ às vezes incorporando a função de anti-herói ‐ são exemplos notáveis.

Um mesmo mito, como o Mito do Herói, pode ser personificado por representantes dos mais diversos grupos políticos, e o processo de “heroificação” adequa a personalidade do salvador aos anseios e às necessidades da sociedade ‐ ou melhor, parte dela ‐ a um determinado momento da História. Os memes políticos de discussão pública (Chagas et al., 2017) abaixo explicitam essa ambivalência, ao atribuir a figura do Herói a representantes de grupos políticos distintos, como o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro (sem partido), o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro (sem partido) e o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

De acordo com Girardet (1987), o tema do líder providencial é repercutido em associação a símbolos de purificação, uma vez que o herói é o responsável pela liberdade e pelo recuo das forças do mal. É por meio da utilização de símbolos promovidos desde tempos remotos que os memes da internet reatualizam os mitos políticos e inflamam o debate, ou seja, antigos repertórios encontraram novos suportes para se propagar.

Um mito não atua isoladamente, já que todo um conjunto mitológico é acionado a fim de contribuir para o espalhamento de determinada mensagem. Sendo assim, muitas vezes, outros mitos, como o Mito da Conspiração, acompanham e oferecem suporte ao Mito do Herói. O inimigo, o responsável por um complô, é referenciado a partir de símbolos satânicos. O antagonista do herói torna-se a personificação do demônio, o anti-herói incumbido de promover o mal, a tragédia e o caos.

Uma vez que o mito pertence ao campo dos sentimentos, o apelo ao Herói Salvador está presente em toda história da humanidade e é um recurso eficiente nas lutas políticas. De acordo com Campbell (2016), a luz surge nos momentos mais sombrios, o que reforça o simbolismo obscuro e demoníaco que gravita em torno da figura do inimigo. Cabe ao herói, portanto, propagar a verdadeira mensagem de transformação e despontar como a voz da salvação, implicações que tangenciam o debate sobre o personalismo e o populismo na política. Ao passo que o herói emana a luz, o inimigo exala escuridão.

Dentro da infinitude de significados inerentes ao imaginário, não há mitos falsos, visto que a mitologia está relacionada com a sabedoria de vida e com a cultura de uma época. De fato, o Mito do Herói pode ser representado por diferentes símbolos e propagado em suportes distintos, à vista disso, com a cultura digital, os memes da internet passaram, entre tantas funções, a integrar os sujeitos às mensagens mitológicas. Arquétipos ou ideias elementares do Mito do Herói apareceram em diferentes épocas da história humana “sob diferentes roupagens”, de acordo com Campbell (2016), ou, como os memes de discussão pública (Chagas e Toth, 2016) abaixo demonstram, diferentes agentes políticos contemporâneos podem incorporar o mesmo arquétipo.

O que se pode depreender desses memes é que eles materializam as expectativas de grupos distintos sobre um indivíduo supostamente iluminado, muitas vezes tido como escolhido ou protegido por forças sobrenaturais, responsável por liderar a sociedade ‐ com honestidade, justiça e austeridade ‐ rumo a um desfecho providencial ante as mazelas enfrentadas pelo povo. A imagem do Herói Salvador é mobilizada com o objetivo de enfrentar um inimigo, seja ele um perigo externo ou uma crise econômica. No caso da maioria dos memes que permeiam este artigo e são amplamente utilizados em debates nos sites de rede social ou em aplicativos de mensagens, ao Presidente Bolsonaro é conferida, por exemplo, a missão da luta contra o comunismo, a esquerda e a “ideologia de gênero”; já ao ex-presidente Lula, a missão dada é o combate contra o fascismo, o neoliberalismo e a desigualdade social.

Os exemplos são muitos e reforçam o entendimento do caráter ambivalente dos mitos, todavia, compreender o impacto do imaginário na política e na produção de memes políticos não significa que há uma igualdade de forças, nem equivalência entre as propostas dos políticos. Identificar elementos da mitologia acionados por grupos de diferentes espectros políticos não equivale a estabelecer semelhanças comparativas entre adversários políticos de matizes ideológicas distintas. Em primeiro lugar, porque há usos evidentemente distintos para cada meme. Um meme pode representar um político como “santo" ou “anjo" como uma alegoria divertida ou como uma mensagem de caráter proselitista. Pode ser satírico ou mistificador. Além disso, é importante também atentar para a manifestação dessas convicções, o que, em última instância, contribui para a colonização do imaginário como um campo de disputa. O uso de metáforas eclesiais como a imagem do “anjo" ou do “santo" pode variar enormemente, da inocência à sacralidade, e, portanto, da imanência, ou qualidade intrínseca ao indivíduo, à transcedência, ou virtude inalcançável, própria do divino. O lugar que ocupam esses imaginários no humor dos memes nem sempre é facilmente apreensível, uma vez que a política é eivada de sentimentos e emoções. Mas representações são como estatísticas, servem a muitas interpretações. Em que pese algum grau de controvérsia semiológica, certos memes que evocam a pureza das tradições e iconizam a figura carismática de um determinado político não contribuem se não para excluir e alienar. Nesse sentido, há uma marcada diferença entre os memes que evocam a figura de Lula e aqueles que evocam a figura de Bolsonaro. 

Os meios, os suportes e as tecnologias se transformam, mas a irracionalidade acompanha e avança ao lado das mudanças. De acordo com Miguel (2004), elementos racionais e irracionais, assim como toda a vida social, fazem parte do campo político. Para ele o “jogo político não trata só ‐ ou mesmo prioritariamente ‐ de questões ‘técnicas’ ou de interesses que podem ou não ser acomodados, mas põe em questão disputas de valores” (p. 403). Não se trata de eliminar a irracionalidade ou a racionalidade do jogo político, pois isso seria “empobrecer nossa visão da política e obnubilar a compreensão de seus mecanismos” (p. 404), mas compreender as paixões e os afetos que tomam conta das discussões nas quais os memes da internet são utilizados como recurso argumentativo e, assim, fomentam a produção do imaginário e dos mitos.

De modo geral, a partir dos memes políticos que ilustram este artigo é possível depreender que o Herói é visto por determinados grupos como aquele que vai romper com velhas proibições; inverter regras comumente admitidas pelo grupo oposto ao seu; levar a luz para onde há escuridão; o bem para onde há o mal; e conduzir o povo em direção a um tempo de paz e harmonia na tão imaginada Terra Prometida. Quando todo mundo tem um messias para chamar de seu, quem poderá nos salvar?

Referências

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 2016.

CHAGAS, Viktor. “NÃO TENHO NADA A VER COM ISSO”: cultura política, humor e intertextualidade nos memes das Eleições 2014. In: Cervi, Emerson U; Massuchin, Michele G; Carvalho, Fernanda C de (org.) Internet e Eleições no Brasil. Curitiba: CPOP (grupo de pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública), 2016. 430 p. 1ª edição. E-book versão PDF.

CHAGAS, Viktor; FREIRE, Fernanda; RIOS, Daniel; MAGALHÃES, Dandara. A política dos memes e os memes da política: proposta metodológica de análise de conteúdo de memes dos debates eleitorais de 2014. In: Intexto, 38, 2017.

CHAGAS, Viktor; TOTH, Janderson Pereira. Monitorando memes em mídias sociais. In: SILVA, Tarcízio; STABILE, Max (orgs.) Monitoramento e pesquisa em mídias sociais: metodologias, aplicações e inovações. São Paulo: Uva Limão, 2016.

GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas / Raoul Girardet; tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

MIGUEL, Luís Felipe. Mito político. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas (Org.). Comunicação e política: conceitos e abordagens. Salvador: Edufba, 2004.

POPOLIN, G. Intervenção militar já: os memes da internet e o imaginário da nova direita brasileira sobre a ditadura civil-militar In: Fluxos em redes sociotécnicas: das micronarrativas ao big data.São Paulo: Intercom, 2019, p. 283-307.

SHIFMAN, Limor. Memes in Digital Culture. London: MIT Press, 2014.

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