Os tentáculos do antifeminismo nos grupos de memes: O exemplo das mães solo

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25 jan
Por:
Vinícius Machado Miguel

Acompanhar grupos de ódio como objeto de pesquisa muda um pouco a maneira pela qual enxergamos o mundo. É difícil ver um meme ou uma piada compartilhados em tais grupos sem ficar com as duas orelhas em pé para as teses mais sérias e mais graves, como aquelas relacionadas à recusa e à negação dos direitos das mulheres. 

Os movimentos antifeministas são muito variados em forma e conteúdo, no entanto, existem algumas ideias que se tornam comuns entre diferentes grupos. Conceitos que já se popularizaram como Redpill, Bluepill, Macho Alpha e Beta aparecem cada vez mais em espaços nos quais as pessoas se reúnem sem esperar que um debate político ocorra, como em alguns grupos de memes.

Parte das pessoas pode não se atentar ao carátrer político de um meme misógino, principalmente quando a misoginia é mais sutil do que uma “piada de tiozão". Muitos consideram apenas sem graça ou inofensivo. E os grupos de ódio aproveitam esse entendimento para tentar empurrar e disseminar suas teses.

Esse breve ensaio tem o objetivo de demonstrar como essas teses são unificadas e bastante compartilhadas em grupos de memes no Facebook. E como o discurso que envolve a questão das mães solo possui um certo modus operandi comum em tais discussões

Onde se criam as teses antifeministas

Podemos localizar a origem dos movimentos antifeministas pelo menos desde os anos 1970, quando grupos de homens se reuniam para discutir as formas pelas quais eles eram prejudicados pelo patriarcado. Essas reuniões, ironicamente, começaram acionando bibliografias feministas, mas logo se criaram rachas nesses movimentos.

Algumas vertentes passaram a duvidar de conceitos como “patriarcado", indicando que, na verdade, os homens que receberiam as piores vidas na sociedade, pois tinham os trabalhos mais pesados e precisavam se arriscar em guerras. Esse tipo de tese antifeminista não apenas sobreviveu, mas continuou a deixar suas marcas principalmente fora do ambiente acadêmico.

Esse ressentimento se desenvolveu, alimentando a visão de mulher como um ser animalesco, incapaz de empatia para com homens e que mobiliza os sentimentos masculinos para ganhos próprios sem nenhum tipo de remorso. Nessa esteira, o sofrimento de mulheres que não agiram conforme o ideal de moralidade destes grupos é comemorado e almejado. 

A mãe solo nas teorias masculinistas

O sofrimento de seus alvos é comum não apenas entre grupos masculinistas, mas também em diferentes setores dos movimentos reacionários. O caso das mãe solo talvez seja o lugar no qual este prazer se intensifica, já que estas mulheres são vistas como interesseiras, desesperadas por um pai que pague as contas dos filhos e que estariam dispostas a atrair qualquer “otário” para ocupar esse papel.

Para os masculinistas, a mãe solo seria a mulher que teria aproveitado uma vida sexual ativa, enquanto ignorava “caras legais”. Ainda sob este ponto de vista, esta mulher, ao ser abandonada pelo pai da criança, estaria procurando alguém para se casar, se aproveitando de “brechas na lei" para cobrar uma pensão socioafetiva e reivindicar parte dos bens deste homem. 

Para boa parte dos movimentos antifeministas, o ideal de mulher corresponde ao conhecido “bela, recatada e do lar”. Isto é, um “tipo" ideal que, reproduzindo padrões do século XIX, não enfrenta a vontade de seus maridos, é grata por fazer o trabalho doméstico e por cuidar das crianças enquanto o homem trabalha fora. E, principalmente, que viveu sua sexualidade de forma puritana durante toda sua vida. 

O meme acima é um exemplo um pouco gritante deste ponto de vista. O alvo está claro e muitos grupos de memes do Facebook não permitiriam esse tipo de conteúdo. No entanto, mesmo com memes mais sutis, essa lógica ainda é perpetuada e essas crenças preconceituosas e violentas ainda se sustentam junto à figura da mãe solo. 

O print acima contém uma ironia sobre o valor da pensão alimentícia, indo contra a tese machista e irreal de que “a mulher tem filho pra ganhar pensão e ser sustentada pelo ex”. A vasta maioria das pensões do Brasil não possuem um valor alto o suficiente para sustentar nem as necessidades básicas da criança. No entanto, é interessante notar como comentários de uma publicação similar no Facebook reforçam teses antifeministas. 

Reparem que a simples existência de uma mãe solo na internet já faz com que esse tipo de comentário apareça aos montes na publicação. Aquilo que foi teorizado por homens ressentidos e frustrados com a liberação sexual feminina, se materializa com o desprezo pelas mulheres que engravidaram e recebem (ou tentam receber) pensão alimentícia dos pais. Questões como distribuição de renda no país e a responsabilidade do pai são explicitadas também em outros comentários, mas as teses antifeministas estão sempre lá. E como existem milhares de comentários por postagem, a vasta maioria deles não são nem vistos pela moderação. 

Agora um outro exemplo:

Esse tipo de print visa principalmente reforçar as teses masculinistas, no chamado pick and choose, ou seja, quando alguém escolhe mostrar apenas as imagens que colaboram com suas teses. Reparem que não existe na imagem nenhuma forma de discurso de ódio, apenas a manifestação de um print, que ninguém sabe se é orgânico ou fabricado. Agora vamos aos comentários:

Reparem que o print foi compartilhado em um grupo de memes para que mães solo sejam atacadas gratuitamente. Os responsáveis por postagens como esta provavelmente sabem que comentários como estes irão surgir, gerando engajamento em tom de brincadeira e humor. Os movimentos antifeministas e os argumentos por eles acionados conseguem, assim, se enraizar na cultura dos memes, fazendo com que suas teses sejam defendidas sejam defendidas nestes espaços. 

Nesse caso, temos a responsabilização exclusiva da mãe pelo filho, a figura da mãe solo interesseira, a demonização da vida sexual da mulher, o uso de palavreado grosseiro para se referir a mulher e a estigmatização do homem que se relaciona com mães solos como um “otário”, ou seja, uma pessoa de baixo valor que não conseguiu “alguém melhor”.

Trata-se de um enunciado que isola essa mulher de qualquer capacidade de viver uma vida afetiva após ter um filho. É um jeito de punir a mãe solo por ter tido uma vida sexual em determinado momento e não ter vivido uma vida normativa com o pai da criança. Isso em um país no qual uma quantidade enorme de crianças não tem o nome do pai na certidão de nascimento, um país no qual muitas mães passam por dificuldades na hora de sustentarem seus filhos.

E não apenas os memes são utilizados como ferramenta para a manutenção desse estigma, mas também os comentários sobre estes conteúdos operam como panfletagem das teses antifeministas.

Entender os mecanismos pelos quais os discursos de ódio circulam nas redes sociais é central para criar estratégias de defesa. Pode não parecer tão grave, até porque a maior parte dos comentários não utilizam o léxico que foi desenvolvido pelos grupos antifeministas ao longo dos anos, no entanto, o ressentimento sempre foi uma arma muito poderosa de organização social. 

Fazer um grupo se ressentir em relação ao outro não é algo que deva ser menosprezado. Os alemães pré-holocausto, os Hutus em Ruanda, os KKK nos EUA e os movimentos contemporâneos anti-imigração utilizaram todos a estratégia do ressentimento como ferramenta de mobilização dos afetos. 

A tese que “determinado grupo está competindo pelos seus recursos e você vai ficar mais pobre por causa dele” é uma retórica bastante perigosa pelos precedentes históricos observados no século XX e XXI. O ressentimento que se aflora dos movimentos masculinistas é uma bomba relógio que já começa a explodir. 

Falar em memes e comentários nas redes sociais é também falar de segurança pública. É, também, falar do isolamento simbólico de alguns sujeitos sociais, como as mães solo, e do aprofundamento da desigualdade de renda entre homens e mulheres devido a questões moralistas. Estamos falando de sujeitos sociais que não podem nem ser identificados em espaços públicos sem serem atacados pelas teorias da conspiração produzidas nos grupos de extrema direita. 

Estamos falando, acima de tudo, de violência.

 

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